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Há mais de trinta anos os fãs de Sandman aguardavam por uma adaptação. O próprio autor dos quadrinhos, Neil Gaiman, prometeu, em um passado distante, a possibilidade de ter um filme. Muitos anos e inúmeras promessas depois, o boato da adaptação dos quadrinhos se tornou uma piada entre os fãs.
Contudo, essa piada foi morta em 2019, quando a Netflix anunciou a parceria com a DC Entertainment e a Warner Bros para produzir um seriado. E foi aí que começou um segundo problema para quem gostava de Sandman ou tinha mero interesse: a falta de fé nas adaptações.
Confesso, não tenho muita crença nas produções da Netflix e, salvo por Stranger Things, tento não empolgar com as promessas. Afinal, a lista de adaptações ruins que já assisti é considerável, e não desejo passar por uma experiência tão frustrante quanto acompanhar Game of Thrones por tantos anos e no fim acabar daquele jeito.
Felizmente, dessa vez, a maldição das adaptações horríveis não foi o caso, pelo menos, por enquanto. Pensando agora, foi preciso 30 anos de espera, o nascimento, crescimento e popularização do streaming para que, enfim, o público geral pudesse apreciar uma obra tão importante e tão humana.
Prelúdios e Noturnos, a primeira parte da temporada
A primeira temporada de Sandman se divide em dois arcos narrativos, a primeira parte sobre os Prelúdios e Noturnos, e a segunda, que conversaremos em seguida, a Casa de Bonecas. Essa divisão é inserida não apenas com personagens diferentes no decorrer da história, mantendo apenas o protagonista Morfeu, mas também com uma paleta de cores diferente do início do seriado ao seu final.
O início da temporada abre com Morfeu (Tom Sturridge), colocando seu elmo e avisando Lucienne, seu braço direito no reino dos sonhos, que iria em busca de algo que fugiu. É subentendido que a personificação dos Sonhos está atrás de um dos pesadelos rebeldes, interpretado por Boyd Hollbrook.
Será nesse momento que o plot principal tem início. Morfeu será aprisionado por 100 anos pelo líder de uma seita ocultista, Roderick Burgess, ou Magus — interpretado por Charles Dance, e assim como em Game of Thrones, consegue trazer personagens desprezíveis.
O cárcere de Morfeu é importante tanto para desenvolver essa primeira parte, quanto para revisitar alguns temas da segunda parte. Com seus anos na jaula de vidro, há a perda de poderes e o roubo deles por Ethel — mãe do grande vilão John Dee. Quanto para elaborar, muito superficialmente, alguns confrontos entre Alex, o filho rejeitado de Magus.
O grande fluxo de conteúdo em um único episódio não se repete nos demais, pois, a sequência de história e fatos ocorre de forma bem construída e fluída. Quando Morfeu finalmente se liberta, após Alex borrar o feitiço que o mantinha preso, ele pode enfim buscar a vingança na família Burgess tanto recuperar seus poderes.
Os próximos episódios, sendo o 2, 3 e 4, serão a transição perfeita do início de uma jornada do herói para sua conclusão. Morfeu terá de enfrentar outras duas personagens marcantes, Johanna Constantine (Jenna Coleman) e Lúcifer (Gwendoline Christie).
A primeira, Johanna, é o destaque nas cenas de humor, fazendo jus ao personagem base dos quadrinhos John Constantine. Essa repaginada explicada na série por Neil Gamian, um dos produtores, é: além da questão de direitos autorais, também a nova personagem lhe dava mais espaço criativo, podendo inovar.
Agora, se é para falar de uma estrela do arco inicial, com certeza é Lúcifer. O anjo caído e rei do inferno, recebe Morfeu para uma conversa casual. Com o desenrolar da busca pelo elmo, Morfeu enfrenta Lúcifer em uma batalha argumentativa, explorando muito mais que apenas efeitos — adotando uma nova modalidade de recurso narrativo.
Além da genialidade dos diálogos nessa parte, Lúcifer conta com mais um apelo. A caracterização da personagem é uma mistura de trevas e luz, abusando de elementos como suas asas negras e sua aparência angelical. Particularmente, amei a escolha de atriz, pois Gwendoline tem um rosto delicado, e possui, em mesma medida, presença opressiva. Todas essas características são reforçadas em seus elementos.
Ao final desse arco, finalmente sabemos mais sobre John Dee, interpretado por David Thewlis. Diferente de outros seriados de adaptação, aqui temos um cuidado extremo com os vilões. Não é apenas um personagem triste, sem motivação. Não, John é possui seu próprio desenvolvimento e passa, em certos momentos, por um caminho parecido de Morfeu.
John Dee se liberta, conquista seu poder e quer usá-lo para construir o que acredita ser certo, assim como o protagonista, mas sendo um humano.
A cena do massacre na lanchonete é seu ponto de virada, deixando de lado seu personagem “coitadinho” e assumindo seu desejo: de transformar o mundo em algo pior, tirar dos humanos o poder de sonhar. Os meios de John são justificados em todas conversas com personagens mais humanos, e nas suas falas.
No quinto episódio finalmente ocorre o confronto de Morfeu e John Dee. A batalha é parecida com Lúcifer, tendo conceitos do mundo fantástico. E, em meio ao confronto, o protagonista tem um dos maiores picos de desenvolvimento na temporada. Ao absorver o rubi, em posse de John, Morfeu recupera seu poder e entende: ele é outro ser após todos os anos sequestrados, abraçar essa parte é retomar seu poder.
A Casa de Bonecas, ou a segunda parte da temporada
Para a segunda parte da temporada, o arco é a adaptação de a Casa de Bonecas. Começamos a história com o teor mais filosófico, focado nas tarefas que os perpétuos possuem e sobre a essência humana. Essa caminhada pelos conceitos e angústias humanas não é inserida como um pessimismo, mas sim é retratada pela Morte, irmã de Sonho ou Morfeu.
A irmã divertida e que representa uma personagem mais viva que os outros perpétuos possui um episódio inteiro para sua divagação. A narrativa passa de uma aventura em busca de poder para uma conversa sobre aceitar outro lado, a essência humana e gentileza.
Pode-se considerar que o episódio introdutório desse arco narrativo se comporta diferentemente aos demais. Ele é mais alegre, possui cores mais vivas e se passa de dia, expulsando a estética pesada dos episódios anteriores. Nele também é apresentado o Hob, o humano que Sonho encontra a cada 100 anos. Essa amizade passa por períodos históricos, retrata figuras famosas e traz a primeira Johanna Constantine, focando no humor.
Para depois o arco virar complemente. O surgimento do Vórtex de Sonho em sua forma humana Rose Walker e os planos de Coríntios para manter sua liberdade são alinhados com a apresentação da família dos perpétuos. Além da Morte, a segunda parte também nos apresenta Desejo e Desespero, os irmãos que querem acabar com o Sonho.
Nesse final, há muitos acontecimentos. O primeiro é a trazer Rose Walker, que procura seu irmão mais novo Jed e está sozinha após o falecimento da mãe, como uma segunda protagonista. O segundo é inserir um conceito novo, em meios há tantos outros do mundo de Sandman, e fazer os personagens em estarem em meio dele. E já adiantando: Rose possui o poder de acabar com a barreira entre os sonhos e a realidade, pondo um fim em Morfeu.
Nessa questão, a segunda parte da temporada possui alguns problemas. Há menos episódios, e mesmo com a duração em média de 50 minutos, ainda foi pouco espaço. Veja bem: Sonho tem de monitorar e encontrar Rose, antes que ela desperte seu poder de Vórtex, podendo quebrar as paredes dos sonhos e da realidade. No mesmo tempo, o protagonista tem de caçar e trazer de volta suas criações rebeldes, e entre eles Coríntios.
Os desfechos finais de Sandman são ainda mais corridos. Após o confronto de Sonho e seu pesadelo Coríntios, vem o principal dilema: Rose Walker deve morrer para manter a realidade e os sonhos em paz? O que vai acontecer se ninguém a evitar?
Atropelando mais alguns minutos, ao episódio final descobrimos que a avó de Rose, Unity, era a vórtex original de Sonho. É explicado enfim que, pelo sequestro de Sonho na primeira parte, Unity passou 100 anos dormindo, e Desejo a engravidou desejando que o poder fosse passado na sua linhagem. Por fim, o poder chega em Rose sendo devolvido a Unity, que pode descansar finalmente.
Se você está pensando que te contei muito sobre a história, você não faz ideia. Há muitos detalhes e pontos importantes, muito além desse pequeno resumo aqui. Pode acreditar.
A beleza em Sandman
Além dos elementos narrativos diferentes entre as partes, o seriado também me chamou atenção pelo cuidado com as cenas. Os efeitos especiais de CGI são coesos e de uma qualidade tão alta que faz parecer mais um filme que um simples episódio.
Quando se observa as cenas e a construção do mundo, é possível pegar detalhes importantes como a mudança da paleta de cores conforme o momento da narrativa. Ou, ainda, como os personagens possuem a essência da obra base, mas adaptando-se no mundo moderno.
Sonho ainda possui seu visual escuro e, perdoe-me a piada, emo e edgy, mas sem estar distante da nossa época. As roupas dos personagens refletem isso: são o exemplo do equilíbrio, da representação fiel dos quadrinhos. Pensando bem, não há um personagem feio ou que sua caracterização não seja bem demonstrada na tela — tanto com roupa, cabelo ou atuação. O elenco ajuda demais nessa beleza, entregando qualidade em todos aspectos.
Se pudesse desejar algo é que todo seriado conseguisse manter elementos tão bonitos quanto Sandman. Infelizmente, é um desejo péssimo porque isso acabaria com cenas ruins e, que na minha opinião, são engraçadas e importantes para a mídia no geral.
Existe algum defeito em Sandman?
Nem tudo é perfeito e há pequenos defeitos no final da temporada. Apesar de a média de duração dos episódios ser de mais de 50 minutos, ainda havia alguns desenvolvimentos acontecendo, e no final esses desfechos ficaram apressados.
Para mim, a falta de tempo no seriado não seria uma desculpa, e poderia ter mais cuidado ao final, fechando a temporada com a mesma maestria que abriu. Contudo, o seriado ainda é um ponto fora da curva, pois, com a média de 10 a 12 horas em uma temporada, Sandman conseguiu entregar mais qualidades que defeitos.
Em todos os episódios, as cenas não são expostas em vão. Talvez a qualidade tenha sofrido com a pressa, mas Sandman é e continuará sendo um dos melhores lançamentos de 2022.
Alguns easter-eggs e curiosidades
Sandman é, de fato, uma obra com diversas camadas. Apresentando aventura e diálogos incríveis, a série carregou elementos dos quadrinhos e muitas curiosidades históricas. Reunimos aqui os pontos-chave da temporada!
Fatos históricos e um pouco de fantasia
Em suas obras, Neil Gaiman sempre investe em fatos como guerras ou epidemias. A diferença é que ao adotar determinado acontecimento, o autor, além de retratar seus efeitos, busca por meio da fantasia explicar o que acontece.
Em Sandman, nos primeiros episódios são mostradas duas referências a esse recurso: o primeiro é Roderick informando que seu filho mais velho morreu na guerra e o segundo é com Unity.
A Epidemia do Sono foi um surto de encefalite letárgica, e infectou mais de um milhão de habitantes da Europa, logo após a Primeira Guerra Mundial. Começando com sintomas de uma gripe comum, o quadro clínico piorava até que os pacientes abandonavam seus corpos e permaneciam dormindo.
Como até hoje a doença não teve sua origem identificada, Neil Gaiman adotou em sua obra a versão fantasiosa: Morfeu, ao perder seus poderes, não pode retornar as pessoas que dormiam de volta a realidade, permanecendo presas no mundo dos sonhos.
Abel, Caim e Gregory
Outro elemento presente nas obras de Gaiman são figuras mitológicas de várias religiões, mas principalmente do Catolicismo. Em Sandman mesmo temos a presença de Lúcifer e inúmeras referências à igreja.
Não poderia ser diferente, os irmãos mais conhecidos no nível de rivalidade do imaginário coletivo, Caim e Abel, estão em Sandman. Eles são retratados como irmãos que moram juntos cuidando de uma gárgula, um pesadelo, chamado Gregory. Infelizmente, diferente dos quadrinhos, no seriado Gregory acaba morrendo para que Morfeu tenha um pouco de poder.
Matthew, o Corvo
No primeiro episódio, Morfeu tem seu primeiro corvo mensageiro morto por Alex. Nos episódios seguintes, com muita rejeição, o protagonista terá um novo corvo, responsável por muitas piadas. Matthew não teve um passado bem definido no seriado, mas nos quadrinhos é mais trabalhado.
O passado do corvo, enquanto humano, foi como Matthew Cable, do Monstro do Pântano da DC. Além de estabelecer-se com um novo personagem em Sandman, Matthew também serviu como um teste para uma fórmula que veio ser adotada em outros títulos da DC. A relação de personagens de uma história com outras tornou-se parte da identidade da Vertigo, conquistando fãs e construindo um universo próprio.
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Fonte: Rotten Tomatoes
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Enredo10/10 ExcelenteA história é interessante e mesmo oferecendo detalhes, não para de trazer novos elementos e personagens marcantes.
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Cenas e figurinos10/10 ExcelenteMesmo com seus elementos fantásticos, a série conseguiu adaptar-se bem a proposta dos produtores. Porém, ainda, sim, o seriado possui cenas lindas e bem feitas, e ouso dizer melhor que muito filme recém-lançado.
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Episódios9/10 IncrívelInfelizmente o único problema do seriado é sua duração e o defeito de apressar o desfecho da temporada, sem dar o devido espaço e cuidado igual da primeira parte. Porém, ainda com esse detalhe, a temporada tem em sua maioria episódios incríveis.
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