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Na noite do último domingo (18), foi ao ar o episódio final de Lovecraft Country, série de terror da HBO que tem ninguém menos que J. J. Abrams e Jordan Peele assinando como produtores. Não por coincidência, nesta semana também “devorei” a obra Território Lovecraft, livro que serviu de inspiração para a série. No review a seguir, te conto os erros e acertos de ambos que, em comum, carregam parte do passado (e presente!) preconceito em território americano.
Sinopse e produção
Dividida em 10 episódios com cerca de 1 hora de duração, Lovecraft Country começou a ser exibida na metade do mês de agosto. Nela, acompanhamos o protagonista Atticus (Jonathan Majors), veterano de guerra em plenos 1950, em uma viagem pelos Estados Unidos à procura do pai perdido. Junto dele há sua amiga de infância Letitia (Jurnee Smollett), seu tio George (Courtney B. Vance) e outros parentes encontrados no meio da jornada.
Para a surpresa do trio aventureiro, o lado racista dos EUA é só a ponta do iceberg dos maiores obstáculos que enfrentarão, pois há monstros (literais) por toda a parte. Com isso, lentamente nos preparamos para uma mistura dos gêneros de terror e fantasia, algo que resulta em cenas recheadas de violência explícita, magia/alquimia e cutucadas indiscretas sobre a face segregacionista americana.
Lovecraft Country foi escrita por Misha Green, responsável pelo drama histórico Underground Railroad. Misha decidiu basear-se no livro homônimo feito por Matt Ruff, que aqui no Brasil chegou como Território Lovecraft (R$47,50 a edição de capa dura na Amazon), lançado no começo deste ano pela Editora Intrínseca. Junto da roteirista, o fortíssimo nome de Jordan Peele tornou-se destaque maior por produzir o programa – afinal, o público já confia nele após o sucesso de Corra! em 2017.
Peele levou, em seu premiado filme de terror, o peso de chocar americanos com a atual realidade. Como colocado por ele em entrevista ao New York Times, o filme fala sobre “a falta de reconhecimento sobre a existência do racismo“. Em grande parte, temos sua influência refletida na série, sem medo de “dar o troco” nas horas necessárias. A quem acompanha a HBO, vai notar que a agenda política faz lembrar a espetacular produção anti-supremacia branca de Watchmen, lançada há exatamente um ano.
Afinal, por que “Lovecraft”?
O nome “Lovecraft” se dá pelo fato de o universo ser baseado em contos do famoso autor H.P. Lovecraft, tido por muitos como o mestre da ficção de terror. Em resumo, ele é elogiado até hoje por fãs deste subgênero que ajudou a fundar (os contos mais famosos tem quase um século de idade), com histórias surreais, de proporções arrepiantes. Não por acaso, o “terror lovecraftiano” virou gênero por conta própria.
Temos poucas adaptações diretas de seus contos, mas as mais recentes populares são o filme A Cor Que Caiu do Espaço, estrelado por Nicolas Cage, e o jogo Call of Cthulhu. De maneira indireta, porém, há o grande impacto cultural de suas obras: o aterrorizante filme O Enigma de Outro Mundo expressa o potencial da bizarrice de suas histórias; a arte de H. R. Giger tem tom industrial e alienígena (que inspirou a franquia Alien); e Lovecraft teve claro impacto na escrita fantasiosa de Stephen King, este, adaptado na TV e no cinema.
Outro fator importantíssimo para ter este nome se dá ao fato de Lovecraft ser racista, acima da média até no começo do século 20. Mas Lovecraft somente expressava o preconceito, de crenças de superioridade europeia, em suas cartas e textos; ele não pertencia a nenhum grupo de atividades extremistas, era mais discreto em sua visão de mundo. Então há uma ironia explícita do título, pois “País Lovecraft” (tradução direta de Lovecraft Country para português) dá a ideia de que o país todo está sob a mesma ideologia de maneira a tratar negros com inferioridade.
Lovecraft Country é fiel ao livro?
Por referência direta à obra original, faço aqui o comparativo adiantado no título do review: esta é uma adaptação melhorada, que traz a essência dos primeiros capítulos, mas muda desfecho e arcos essenciais para a história funcionar de forma visual. Em especial, a melhor criação da série foi a personagem Ji-Ah, coreana que torna-se protagonista surpresa do sexto episódio (Meet Me in Daegu).
Ponto curioso é que o livro foi pensado a princípio para ser o roteiro de uma série, em 2007, para a Fox Studios. Como costuma acontecer em adaptações para a TV, os episódios basicamente são segmentados na mesma forma que o livro separa seus capítulos. A variedade de personagens resulta em focos únicos da história, em terceira pessoa, fundamentados na maioria das vezes por diálogos.
Em pelo menos 30 páginas de todo Território Lovecraft há conversas dos protagonistas contando histórias – sim, uma história dentro da outra – ponto que particularmente obriga a quebra de ritmo de uma atmosfera que tinha potencial para ser muito mais fluída. Até certo ponto da jornada do grupo, mais ou menos na metade da obra, temos fidelidade aos detalhes. Porém, desde o início é colocada uma dinâmica interessante: o que nas páginas acontece a um conhecido dos protagonistas, como a blitz policial na fuga do Condado, em Lovecraft Country vemos isso acontecer ao próprio trio principal.
Sem necessidade de spoilers (nem do livro, nem da série), posso afirmar que a versão da HBO amarrou a história com maestria, coisa que decepciona qualquer um que leia o original com o mesmo contexto em mente.
Vale a pena assistir?
Até quem não conhece nada sobre as obras de H.P. Lovecraft e não leu o livro original (de Matt Ruff) pode compreender a série em toda sua excelência. Contudo, o contexto sobre alquimia e termos mais complexos ficam a desejar. A falta de explicação mais “mastigada” também é problema forte de sua base de inspiração, então culpar somente a série seria um ligeiro equívoco.
Em relação a quesitos técnicos, Lovecraft não deixa na mão. Efeitos visuais dos monstros e cenas fantasiosas não desprendem da imersão. Tratando-se de uma realidade dos anos 1950, tudo fica convincente, da escolha de cenários ao visual dos personagens. Na escrita em si temos uma poucos problemas de ritmo, com dois episódios em específico sendo os mais lentos da temporada. Por sinal, ela funciona como minissérie (fechadinha) sem gancho obrigatório para sequência, o que agrada muitos espectadores.
Como costuma acontecer nas séries da HBO, uma ótima sugestão é ficar ligado no aplicativo HBO Extras (disonível na App Store e Play Store), a “segunda tela” que vai te fazer compreender muito do background do programa. Comentários feitos à história norte-americana são grande parte do conteúdo que brasileiros naturalmente não irão captar, então é sempre bom ter auxílio de fontes confiáveis sem se preocupar com spoilers. Além disso você tem complementos sobre as criaturas lovecraftianas, logo, caso tenha interesse nos contos antigos, pode ir atrás e aumentar sua bagagem cultural.
O mais estranho é que eles entregam um tom específico no primeiro episódio que muda drasticamente do segundo em diante, então não se deixe enganar. Se você gosta de uma montanha-russa de emoções, então Lovecraft Country é perfeita para você. O único ponto fraco são certos episódios focados em personagens secundários, deixando de lado o esqueleto principal da narrativa. A desculpa de que isso “faz parte do suspense” não funciona bem quando se tem 10 episódios – e uma história complexa com cenários que mudam a cada um deles – com múltiplos protagonistas. Mesmo assim, vale bastante à pena.
Assista à primeira temporada completa de Lovecraft Country na HBO Go.
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