Índice
- O relato da enchente por Ariane
- Apenas mais uma chuva no Rio Grande do Sul?
- O pior ainda estava por vir
- Proporção maior do que a esperada
- Decisão importante
- A fuga desesperada
- A procura por um abrigo
- Síndico e vizinhos fazem o que podem
- Os riscos para quem ficou
- O medo da água subir mais
- A humilhação de ter de lutar pelo básico
- Preocupação com os entes queridos
- Incerteza sobre o amanhã
- O descaso e a falta de apoio em um momento crucial
- Saiba como ajudar o Rio Grande do Sul
Há pouco mais de uma semana, a enchente do Rio Grande do Sul tornou-se um dos episódios mais tristes de toda a história do estado. Submerso pela enorme quantidade de água, resultante das chuvas torrenciais que assolaram a região, o local parece hoje um verdadeiro cenário apocalíptico. Segundo dados da Defesa Civil, já são mais de 110 mortes confirmadas, com 143 desaparecidos e 756 feridos, até este momento.
No entanto, muitos dos sobreviventes dessa enorme tragédia estão tendo de lidar com a perda de suas casas, como no caso de Ariane. Em sua conta @arianedocarmo no X (antigo Twitter), a moça passou a relatar todos os momentos de desespero que viveu nos últimos dias, em meio ao caso de alagamento no Rio Grande do Sul, proporcionando aos brasileiros a oportunidade de testemunhar tudo o que está acontecendo, em uma história já vista por mais de 7 milhões de usuários.
O relato da enchente por Ariane
Apenas mais uma chuva no Rio Grande do Sul?
De início, Ariane contou em publicações no seu perfil que a enchente que chegava ao município de Lajeado, no Rio Grande do Sul, seria mais uma daquelas que tiram o sono dos moradores, mas que logo se vão.
Quando a água começou a subir, eu nem pensei em sair de casa, porque eu moro em um andar “alto”. Diziam que a cheia seria maior que a outra, mas maior quanto? Eu moro no 5º andar.
Quando a água chegou na frente do prédio, eu desci para pensar na vida e vi o síndico tirando a caixa do alarme de incêndio do prédio, recém instalada: ‘Ih, Ariane, isso é caro’. Eu segurei a lâmpada de emergência que ele usava de lanterna para ajudar e comentei: ‘Mas nem chega nessa altura, Joir’. Ele disse que também achava que não, mas, por via das dúvidas…
Eu olhei a água, que mal e mal chegava na ponta da calçada, e falei: ‘Não sei se saio. Aqui é seguro, mas vamos ficar sem luz e, talvez, ilhados’. ‘Se tu quer ir’, ele disse, e me olhou nos olhos, ‘vai AGORA’. Eu senti uma urgência naquela voz que me fez mover.
Ariane, em seu perfil no X
O pior ainda estava por vir
Apesar de preocupado, o síndico não acreditava que era possível a enchente chegar no nível absurdo que chegou. De fato, algo bastante preocupante.
Eu e o síndico já havíamos conversado antes sobre o nível da água. As lojas no térreo e os dois primeiros apartamentos (o 001 e 002) foram esvaziados, por precaução. A subsíndica queria esvaziar também os apartamentos em cima daqueles (101 e 102), por via das duvidas, e o síndico achava que ela estava gerando pânico à toa.
Vejam bem: meu síndico não é nenhum tipo de negacionista. Ao contrário. Ele é excelente. Mas em todas as cheias do rio, morando há 40 anos no prédio, a água chegou uma vez, ano passado (na que era, então, a ‘maior cheia’, ‘histórica’) apenas naquelas duas primeiras unidades – sem cobri-las, parcialmente apenas. E isso na ‘pior cheia de todas’.
Ariane, em seu perfil no X
Proporção maior do que a esperada
Não demorou muito para que Ariane, seu síndico e os vizinhos percebessem que o que estava por vir era muito maior do que tudo já visto anteriormente.
‘A Ilzete está com medo, mas para a água chegar nos 101 e 102, só se Lajeado já estiver submersa. Para pegar enchente ali, Estrela inteira já foi, Arroio do Meio já foi… Ih, acabou tudo’. Errado ele não estava.
O porém é que a natureza disse ‘ok’ e Lajeado se foi, Arroio se foi, Estrela se foi. E quase todas as nossas cidades. Eu só não fiquei no prédio por conta daquele ‘sai AGORA’. A possibilidade da impossibilidade de deslocamento me criou uma urgência. Perguntei a ele se teria uma meia hora para me organizar e ele fez cara de que talvez nem isso.
Ariane, em seu perfil no X
Decisão importante
Preocupada com o crescimento acelerado no nível da água, Ariane teve de tomar uma decisão fundamental para para o seu bem-estar e o de sua família.
Subi correndo os muitos lances de escada e perguntei pra minha irmã, de 18 anos, se a gente saía ou ficava. Era uma trovoada medonha lá fora e as ruas laterais ao prédio e a garagem já estavam com água.
‘Tenho medo de estar expondo a gente ao risco à toa, porque aqui estamos seguras, só vamos ficar sem luz’. ‘A gente tá segura?’, ela perguntou. ‘Certeza, a água não passa do saguão’. Mesmo assim, pelo sim pelo não, ela quis sair, por medo de ficar sem água e luz comigo e com o bebê – porque ainda tem o bebê -, presa no prédio.
Ariane, em seu perfil no X
A fuga desesperada
Na companhia de sua irmã e protegendo a filha a todo custo, Ariane conta que fez todo o possível para escapar da terrível situação e procurar um abrigo seguro.
Arrumamos uma mochila rápida para a decisão tomada às pressas. Rápida não, absurdamente rápida e apavorada. Eu nem sei o que pus naquela mochila. Muitos pares de calça para o bebê. Nenhuma meia. Blusas para mim. Nenhuma calcinha.
Ração para a cachorra – ainda tem a cachorra. Nenhum documento. Uma lanterna com bateria pela metade. Nenhum carregador de lanterna. E desci. Eu não sei quantos minutos levei para fazer minha mochila, mas quando cheguei lá embaixo, já não dava mais pra sair.
A água estava acima do meu joelho. Meu bebê estava preso em mim com um canguru. Nas minhas costas uma mochila pesada e gigante. Em uma mão uma sacola de compras pesada com água e ração. Na outra o guarda chuva. Eu estava toda tomada pra atravessar aquela água com segurança.
Ariane, em seu perfil no X
A procura por um abrigo
Com metade do corpo submerso na água, Ariane deve de enfrentar um dos maiores desafios de sua vida na tentativa de encontrar um lugar onde pudesse se abrigar em segurança.
Minha irmã tinha também uma mochila, a dela. O guarda chuva numa mão. A cachorra (eufórica com o passeio) na outra. Minha cachorra é grande. Como passar aquilo ali? Foi o síndico, de novo, quem surgiu. Ele nos disse pra dobrar as calças até bem alto (molharam igual).
Eu passei erguendo os pés do bebê. Minha irmã com sua mochila. E ele fez duas viagens carregando no colo o cachorro em uma e na outra as bagagens. No meio do caminho perdi meu chinelo, estourou. Eu saí assim pela cidade, cheia de carga, com um peso muito maior do que consigo aguentar, e ainda não sei como segurei mochila, sacola, a bebê amarrada no meu corpo, tentando evitar que ela se molhasse (consegui), descalça pisando aquela água suja até a casa de um amigo, que nos deu abrigo.
Ariane, em seu perfil no X
Síndico e vizinhos fazem o que podem
Já bastante longe de casa, Ariane ficou sabendo que o síndicos e os vizinhos que permaneceram no prédio fizeram tudo o que podiam para salvar pertences de outros moradores.
O síndico ficou no prédio. Ele e mais cinco. Não porque fosse irresponsável, não porque estivesse ignorando qualquer aviso, mas porque a gente mora em uma rua que não alaga. A água, quando muito, chegaria no apartamento 01, mas jamais no 101. Ela chegou até o 202. Os vizinhos que ficaram no prédio ficaram presos.
A água subiu nível por nível – os andares no meu prédio não ficam emparelhados, sobem de ‘meio a meio’, de modo que os 103 e 104 são acima dos 101 e 102, que são acima dos 01 02. Os 201 e 202 estão acima dos demais. A água engoliu todos eles. Só parou no 203. A casa do síndico era o 103.
À medida que a água ia subindo, os cinco do prédio foram ARROMBANDO as unidades inferiores onde ela iria entrar para tentar SALVAR as coisas dos vizinhos que haviam saído do prédio. Isso mesmo, nessa situação de desespero, presos num corredor e vendo a água subindo, eles tiveram o heroísmo de sair buscando os pertences dos outros moradores para tentar preservar algo, o que desse da cada um. Isso totalmente no escuro, sem água, somente com as luzes de emergência do prédio.
Ariane, em seu perfil no X
Os riscos para quem ficou
Enquanto tentavam salvar o que podiam, os vizinhos se submetiam a algumas situações bastante perigosas, correndo o risco de se machucarem de forma feia.
Ouvi que uma das moradoras tinha um colchão de bebê no apartamento, do seu filho, e usou como balsa para transportar boiando os bens dos vizinhos. Eles colocavam os itens em cima e empurravam para o corredor, onde outros içavam o colchão para os níveis mais altos.
O filho de uma vizinha se cortou no braço, gravemente. Não havia mais Internet. No grupo do condomínio ela avisou que precisava de socorro médico. Já não tinha mais como subir. Como disse o síndico, para chegar água no 102, toda a região já estaria submersa antes. Estava. As redes de 3g estavam fora. Energia elétrica também.
Os barcos eram insuficientes e ninguém conseguia ligar. Eles não tiveram escolha, além de seguir presos no prédio, passar a noite ali, fugindo da água e subindo o que podiam, cada vez mais alto. Quando o rio passou de trinta metros, só tinha dois andares de fora.
Ariane, em seu perfil no X
O medo da água subir mais
Em meio ao caos que imperava, a preocupação era se as coisas ainda podiam piorar e o que mais poderia ser afetado diante do cenário apocalíptico.
O vice-governador disse que uma barragem rompeu e deveriam evacuar. Isso cobriria até o meu apartamento, que é o último. Todas as minhas coisas, meus documentos. Mas o pior era pensar no síndico, que carregou minha cachorra no colo, preso na área de 2m² da escada, na penumbra, vendo a água subir, com um rapaz com o braço cortado do lado.
Felizmente, a água não subiu até os 40 metros. Nós não sabíamos que eles estavam retirando coisas dos apartamentos atingidos. Eles fizeram isso sem nem ter como se comunicar com o mundo. Quando puderam avisar no grupo, dois dias depois, eu chorei.
Ariane, em seu perfil no X
A humilhação de ter de lutar pelo básico
Abrigada por um amigo, Ariane começou a tomar dimensão da enorme proporção que a tragédia chegou. A partir de então, iniciou a tentativa de se virar com o que tinha, ao passo que fez de tudo para conseguir o que precisava.
Enquanto eles tentavam dar o seu melhor pelos outros nessa situação extrema, em algum lugar da Internet, um ou uma imbecil, de outro estado, digitava que gaúchos ‘merecem’ sofrer a enchente. Que gaúchos ‘merecem’ que ninguém se importe.
Na casa do meu amigo eu estava sem meus remédios de uso contínuo, que esqueci na pressa, pensando como fazer pois não posso ficar sem eles, correndo atrás de receita (no apocalipse), de notícias (no apocalipse), de água potável (no apocalipse). A pouca água que levei comigo ficou para o meu bebê e eu não tinha nenhuma chance contra as filas de duas a três horas no mercado, já que tinha um bebê.
Fui conseguir umas garrafas em uma farmácia, onde desabei chorando de gratidão e pavor, tudo ao mesmo tempo, na frente de desconhecidos.
Ariane, em seu perfil no X
Preocupação com os entes queridos
Em meio a todo o drama que vivia, Ariane ainda tinha de se preocupar com o marido, que havia saído de casa por algumas horas, mas que já não via há dias.
No meio disso tudo, meu marido estava na cidade vizinha quando começou o problema. Não é como se tudo isso tivesse levado dias. Foram poucas horas. Ele saiu para trabalhar num dia normal de terça-feira, como todas as terças são, mas não conseguiu voltar.
Meu marido sumiu por horas naquela terça. Quando apareceu, me avisou que houve um desmoronamento na estrada, que não tinha por onde passar e que já não tinha luz nem Internet na cidade onde estava, que também começou a alagar. Convenci ele a não tentar voltar por rota nenhuma.
E a não tentar voltar, ele disse que dormiria lá. No dia seguinte, foi quando a água atingiu o nível máximo. Deslizamentos por todo lado, nenhuma rota era segura. A enchente carregou pontes e estradas.
Ariane, em seu perfil no X
Incerteza sobre o amanhã
Ariane passou os dias preocupadas com um possível retorno de seu marido, principalmente ao tomar ciência de como as coisas estavam estrada afora.
Eu morria de medo dele ter levantado de manhã naquela quarta e decidido tentar voltar. Da chuva ter diminuído na cidade onde ele estava e ele ter pensado que era seguro retornar. Eu não tinha como me comunicar. Mandei SMS, whats, tudo que tinha à disposição. Mas não chegava. Eu tinha pesadelos e alucinações com o corpo dele afogado.
Eu tinha crises de choro, e meu bebê, mesmo sem saber o motivo do choro, mas de algum jeito adivinhando, me fazia carinho e dizia: ‘Papai está bem’. Naquela quarta eu fui dormir agarrada na nossa filha e o cheiro dela era igual ao dele. Entrei em pânico.
Acordei no meio da noite, apavorada, achando que ele estava no quarto. A minha cabeça saiu completamente do lugar e ainda não voltou, mas eu não podia surtar totalmente porque tinha meu bebê gaúcho pra cuidar. Meu bebê gaúcho que, segundo alguns na Internet, não merecia piedade.
Ariane, em seu perfil no X
O descaso e a falta de apoio em um momento crucial
No fim, Ariane ainda conta que sente o desprezo por parte de alguns usuários da rede social, que sugeriram que a população do Rio Grande do Sul merecesse passar pelo que estão passando.
Eu fui ter notícia do meu marido dois dias depois. Felizmente, a salvo. Aliás, desde a enchente eu experimento choro, uma dor de cabeça que não passa, tremores por todo corpo e CULPA, porque tem ‘gente muito pior do que eu e, no final, eu não perdi nada’.
E tudo isso para entrar na Internet e ler que gaúchos merecem passar por isso, que esse estado não merece piedade, que aqui residem brancos separatistas, nazistas, egoístas e outros istas. E outros absurdos que desconsideram a pluralidade desse estado, mas não apenas que desconsideram o BÁSICO da humanidade: que ninguém ‘merece’ ficar preso em um corredor escuro acuado pela agua; ninguém merece perder a vida ou os entes queridos; ninguém merece ter de lutar por água potável.
E que é claro que já ocorreram diversas tragédias nesse país, e a condução do governo nessas ocasiões sempre deixou a desejar, mas que, mesmo assim, ninguém “merece” ter sua dor ignorada e ver o resto do mundo parecer não se importar quando uma região inteira é alagada.
Ariane, em seu perfil no X
O Showmetech tentou contato com Ariane para a produção desta matéria, mas não obteve resposta.
Saiba como ajudar o Rio Grande do Sul
Desde que a população brasileira passou a tomar ciência do que acontece no Rio Grande do Sul, muito por meio dos relatos da inundações, milhares de pessoas estão se mobilizando, diariamente, para fazer todo o possível em prol das vidas que correm risco na região.
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Fonte: Ariane do Carmo, @arianedocarmo no X
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