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Como funciona a psicologia em Silent Hill? Primeiro, há de se considerar que Silent Hill é uma franquia relativamente esquecida pelo público geral dos jogos, sendo relegada ao nicho dos fãs de terror. Esse status não é de se surpreender, ainda mais ao considerarmos que a Konami, produtora do game, não parece muito interessada em revitalizar a franquia. É curioso pensar que, de certa forma, esse esquecimento faz parte de um dos pontos fundamentais da série: o terror psicológico.
Não vou entrar em detalhes sobre a diferenciação entre terror e horror porque, bem, isso não é um trabalho para a faculdade. O que importa, aqui, é a análise do horror suscitado pelo interior da mente – traumas, situações, eventos, fenômenos e todo tipo de acontecimento responsável por marcar nossa experiência de vida. Silent Hill capitaliza – no bom sentido da palavra – em cima desses medos, criando uma experiência espetacular.
Desde o primeiro título da franquia, lançado em 1999, um dos conceitos fundamentais da narrativa é o da ambiguidade. Não sabemos até que ponto aquilo que os protagonistas enfrentam é real, fruto do paranormal, ou uma alucinação potencializada pelo trauma sofrido. Harry Mason, do primeiro jogo, parece enlouquecer a cada revelação; James Sunderland, do segundo, já está louco antes mesmo de chegar à Silent Hill; Heather (ou Cheryl) Mason segue os passos do pai; e assim por diante.
Todas as personagens mencionadas acima são, em maior ou menor medida, traumatizadas. E, em última instância, é essa característica que as leva até a cidade de Silent Hill, responsável por colocar essas pessoas contra seus passados. O ápice disso se dá em Silent Hill 2, que é uma obra-prima narrativa. James enfrenta símbolos do seu subconsciente a cada instante, além de encontrar personagens secundárias que lutam contra seus próprios terrores.
Cada uma dessas personagens é incapaz de vocalizar seus sofrimentos, retirando o impacto daquilo que tanto ouvimos recentemente como lugar de fala, um conceito ligado ao campo lacaniano da psicanálise. O próprio James Sunderland enfrenta essa problemática de não conseguir fazer frente aos seus erros, o que cria toda uma ressignificação dos inimigos encontrados ao longo da jornada de Silent Hill 2.
A repressão sexual que acomete tanto James quanto Harry após a morte de suas respectivas esposas é delineada por meio da aparição ou das enfermeiras, ou dos manequins, inimigos que representam esse sofrimento inerte aos dois protagonistas – e, claro, que remete ao pai da psicanálise, Freud. No caso de Heather, o mundo desfigurado é um pouco mais complexo de se explicar sem spoilers, considerando seu papel geral na trama; basta dizer que suas angústias são materializadas considerando o culto responsável pelos eventos do primeiro jogo e que colaboram bastante para a psicologia em Silent Hill.
Protagonistas e sofrimentos
Retomando um pouco de Freud, é possível analisar parte da obra usando uma ideia interessante proposta pelo psicanalista: a pulsão, dividida em pulsão de morte e vida. Ainda que sejam conceitos antagônicos, os dois aspectos colaboram para equilibrar a existência dos humanos – quando um deles é desbalanceado, temos problemas da ordem psíquica. Para ilustrar isso, tomo novamente a personagem James, de Silent Hill 2.
Ao perder sua esposa para uma doença – descobrimos a real gravidade da doença e dos impactos dela na vida do homem ao longo da narrativa -, James enfrenta uma grande onda de autodestruição e culpa, que culminam na sua chegada à Silent Hill. Essa jornada autoimposta, fruto de uma carta de sua esposa recém-falecida, transforma-se numa batalha para reencontrar o equilíbrio das pulsões de vida e morte. Não à toa, um dos principais antagonistas do jogo comete suicídio assim que seu propósito é cumprido.
Enquanto isso, no primeiro jogo, Harry Mason enfrenta tanto a morte da esposa quanto o desaparecimento repentino de sua filha, quando ambos vão passar férias na cidade amaldiçoada. A névoa sombria do que deveria ser um lugar de atração turística leva o homem às portas da loucura, ainda mais quando descobrimos o que de fato está acontecendo. Mas será que esse fato, ao observarmos o game individualmente, é mesmo… um fato? Como mencionado logo no início do texto, a franquia aposta na ambiguidade e na confusão para brincar com a mente dos jogadores e faz isso muito bem – eis de onde veio o uso do termo psychological horror.
Talvez seja justamente essa falta de clareza que faz com que nós, os jogadores, tenhamos tanto interesse nas narrativas com a psicologia em Silent Hill. Afinal, quantas situações já nos machucaram e que, depois de anos, ficaram embaçadas, como se um nevoeiro digno da franquia populasse nossas mentes, restando só uma centelha de dor? O purgatório melancólico materializado na forma de uma cidade pacata e esquisita pode ser, no fim do dia, uma alegoria para todos nós; um lembrete de que nossas mentes são complexas, frágeis e, acima de tudo, vivas.
Uma cidade ou uma alegoria para a psicologia em Silent Hill?
Um dos conceitos mais aceitos pela fanbase da franquia é o de que a protagonista de fato é a própria cidade de Silent Hill, única característica presente em todos os jogos. A cidade pode ser considerada uma espécie de purgatório, mas, por outro lado, pode também ser imaginada como a manifestação do nosso inconsciente, o que explicaria todo o simbolismo desenvolvido pelo time de criação, que se conecta diretamente às obras insanas do artista britânico Francis Bacon e a outras obras de arte modernas/contemporâneas.
Esse protagonismo surge do fato de que a cidade, apesar de ter momentos “normais”, por falta de expressão melhor, se transforma, na verdade, naquilo que sempre foi: um lugar sinistro, assombrado – ominous ou eerie, em inglês, talvez sejam palavras que dialoguem melhor com o estado dela. Podemos levar esse conceito mais a fundo ao explorarmos também narrativas góticas tradicionais, onde castelos arruinados, monastérios abandonados e cidades-fantasma são palco para aventuras pouco convidativas, mas bem interessantes – não à toa, surgiram no fim do século dezenove e suas influências perduram até hoje.
O brilho – ou sombra, a depender do estilo desejado – de Silent Hill está na união desses conceitos a uma história que garante profundidade para as personagens e para a trama em si. Sim, o segundo jogo foi o ápice desse mecanismo, mas os outros, em maior ou menor grau, também colaboraram para solidificar a experiência e o legado do Team Silent. Ademais, acho pouco provável que quem jogou o 2 consiga se esquecer da carta da Mary, lida aos prantos nos créditos. Depois de tudo que passamos e descobrimos, essa carta foi literalmente o prego no caixão do protagonista e do player.
A diferença é que todos esses conceitos de psicologia em Silent Hill são internalizados e colocados como panorama para os conflitos das personagens com quem jogamos e, claro, nos identificamos. Harry era um pai buscando sua filha, James um homem atormentado pela culpa, Heather uma mulher tentada pela vingança, Travis um caminhoneiro de bom coração. Todos os sentimentos que os protagonistas sentem, nós, que estamos atrás do controle, também já sentimos, ou pelo menos sabemos de sua existência. Mesmo assim, eles são usados contra as personagens constantemente pela cidade, que passa de uma observadora passiva para uma agente bastante ativa e periculosa.
Já parou para pensar em como seria a sua Silent Hill? Será que ela estaria cheia de pedaços de metal enferrujado, sangue seco e uma criatura humanoide com uma cabeça de pirâmide? Ou seria um lugar eternamente em chamas, com poucos espaços para suspiros e descanso? Delinear seu próprio purgatório pode ser doloroso, mas é de extrema importância para você conseguir enfrentar seus demônios, sejam eles quais forem.
Não deixe de conferir também um review sobre The Medium, jogo de terror que possui algumas inspirações da psicologia em Silent Hill.
Fontes: The Guardian | Bear Den Gaming | Psychology Today
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