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Bem localizado, mobília rica, piso de madeira, paredes brancas em diversas texturas e grande janelas que proporcionam ótima iluminação. Essas são as características de um apartamento em Manhattan, no bairro de SoHo. Porém, a cobertura não é para “qualquer um”. A adega repleta de vinho que vai do chão ao teto é reservada para digital influencers.
São 223m² construídos pela Village Marketing, mirando na comunidade de digitais influencer do Instagram. Toda a arquitetura do imóvel foi planejada para ser plano de fundo de postagens. Apesar de focar num público-alvo limitado que se dispõe a alugar o apartamento, a Village Marketing chega a faturar US$ 15 mil por mês.
Em um mundo cada vez mais conectado, a figura do digital influencer é tida como o novo tipo de celebridade. Porém, a construção desse caro apartamento apenas tirar fotos de um cotidiano irreal é digna de uma reflexão: será que não estamos alimentando “falsos ídolos”?
Cibercultura e seu impacto
No contexto atual da cibercultura, espera-se que cada pessoa tenha perfil em alguma rede social. O “modo de usar” dessas redes é se expor ao máximo. A escrita confessional é o gênero mais popular na internet e alimenta grandes sites-empresas como Facebook, Instagram e Twitter, cada qual com suas características.
Facebook para compartilhar posts alheios que refletem seu pensamento, Instagram para exibir fotos glamourizadas do cotidiano e Twitter para falar abertamente sobre qualquer assunto íntimo. Na realidade, a semântica da palavra “intimidade” pode ser questionada na proposição desse artigo. Não parece possível numa era de extrema exposição determinar o que é íntimo.
Não se deve cometer o erro de acreditar que esse fenômeno foi criado nessa década. A atual era da cibercultura, protagonizada pela internet, nos oferece diversas ferramentas que, aliadas à sua instantaneidade, nos possibilitou novas formas de interação, mas baseados em desejos já existentes. Quem nunca quis estar em contato com o melhor amigo ignorando barreiras geográficas e temporais?
No fim do século XX a internet promove uma verdadeira revolução, em que as mídias digitais invadem o cotidiano e se tornam essenciais a seus usuários. Antes de entrarmos no debate da democratização da mídia, é interessante notar como a frieza técnica e precisa da computação, do funcionamento dos bits por 0 e 1, sim e não, input e output; culminou em fenômenos que mexem com a subjetividade humana.
As relações interpessoais se alteraram, os modos de viver, trabalhar e se divertir mudaram. A própria relação do indivíduo com ele mesmo se modificou. É como expõe Heim em A metafísica da realidade virtual (1993), ao afirmar que os atributos essenciais das mídias digitais e ciberespaço (metafísica) alteram a essência do indivíduo (ontologia). A “rede de computadores” se concretiza como o maior impacto da cibercultura na humanidade.
Luís Martino, em Teoria das Mídias Digitais, define cibercultura através de Pierre Levy:
Em linhas gerais, o termo designa a reunião de relações sociais, das produções artísticas, intelectuais e éticas dos seres humanos que se articulam em redes interconectadas de computadores, isto é, no ciberespaço. Trata-se de um fluxo contínuo de ideias, práticas, representações, textos e ações que ocorrem entre pessoas conectadas por um computador — ou algum dispositivo semelhante – a outros computadores.
O ciberespaço é enorme, ilimitado e dinâmico; um mundo virtual – mas não oposto ao real, podendo ser interpretado como complementar ao físico. A cibercultura é universal sem totalidade, pois se caracteriza por sua multiplicidade, fragmentação e desorganização (LÉVY, 1996).
Hoje temos vários aplicativos, sites e programas, esses são serviços advindos da democratização da comunicação. Antes da internet, a população civil não possuía participação direta nas mídias, pois a comunicação de massa é feita por veículos privados. Para o cidadão comum, aparecer na TV só era possível em três situações: passar no fundo da câmera, ser notícia trágica em programa policial ou ser aleatoriamente entrevistado.
Sempre fomos apenas massa, mas com a criação de novos canais de comunicação, através da internet, a realidade é invertida. “Definitivamente, houve uma inversão da lógica entre espectador e produtores de conteúdo. Hoje o público produz suas histórias” (Worcman, 2014, p. 151)
A construção do “Eu” na era digital
O blog é o primeiro veículo digital acessível à população. Vários serviços foram criados oferecendo um domínio na internet de modo fácil. Os blogs podem se basear em características jornalísticas, mas são reconhecidos por terem introduzido no ciberespaço o gênero de escrita confessional. O veículo blog se popularizou como um público diário íntimo.
Hoje os blogs já não são tão populares, substituídos pelas redes sociais, consideradas “microblogs”. As redes sociais deram ao ser humano novos espaços confessionários, pois é cerne de seu funcionamento.
Ao criar um perfil no Facebook, por exemplo, o usuário recém-chegado já é questionado sobre seus gostos, filmes que assistiu e a nota que dá, a sua religião, partido político que gosta e até a orientação sexual.
Sob o pensamento de Pierre Mercklé no livro Sociologia das redes sociais (2004), podemos destacar três aspectos específicos das redes sociais online:
- Capacidade de criar um espaço pessoal de apresentação de si, em que se pode escolher todas as imagens e os textos a serem exibidos.
- A possibilidade de acessar os espaços/perfis de outras pessoas, através das propriedades e liberdades de cada rede social.
- Ocasião de se relacionar com outros usuários da rede, observando seus perfis, a partir de interesses e afinidades comuns.
É nesse cenário atual que o ser humano é levado a se expor cada vez mais, porém vamos além, pois estamos expondo um personagem. A construção do eu é constante na internet, uma vez que as redes sociais nos oferecem cada vez mais instrumentos para nos exibirmos.
Deve ser claro que mesmo sem internet nós encenamos personagens e sempre queremos que eles sejam apreciados. É como uma fachada, conceito elaborado por Goffman na sua obra A Representação do Eu na Vida Cotidiana em 1985.
Silvana Dalmaso, em A Vida Exposta nas Redes Sociais, explora: “A fachada corresponde a uma máscara permanente que usamos, representando nosso desempenho frente aos outros, o que queremos transmitir”.
É algo que acontece mesmo de modo inconsciente, estamos sempre encenando e analisando o feedback da “plateia” através de gestos, falas e ações. Quando nosso personagem convence, é legitimado socialmente porque conseguiu mantê-lo, logo deve continuar em manutenção digna de tal porque só é possível interagir com aquele público se estiver com aquela fachada, em específico. Entendemos quando Goffman diz que “atributos aprovados e sua relação com a fachada fazem de cada homem seu próprio carcereiro”.
A construção do eu-personagem na internet precisa respeitar a ordem instantânea e constante da cibercultura. Como diz Dalmaso, com citação de Sibilia:
No mundo das redes sociais, dos dispositivos móveis e da comunicação instantânea, o acontecimento se legitima se for publicado, visível. É a sensação de que “só acontece aquilo que é exibido em uma tela: tudo quanto faz parte do mundo só se torna mais real ou realmente real se aparecer projetado em uma tela”
Na urgência de legitimar seu personagem, o indivíduo é tomado por ideais do neonarcisismo “em que os sujeitos se amam através do olhar do outro, um novo narciso que se constitui ao se mostrar e se exibir aos olhares externos. Os olhares dos outros que mostram a esse novo narciso quão admirável ele é” (GERMANO e NOGUEIRA, 2017). Assim se dá porque quem necessita de aprovação do público não é a obra criada, mas o autor. Ao mesmo tempo que tudo precisa ser registrado e publicado, fotografia não é mais preciosa pela lembrança a que remete, mas pela quantidade de “likes” que recebe.
A fachada faz o digital influencer
Hoje nós queremos ser a notícia, seja na nossa roda de amigos ou para o mundo todo. Com a democratização da mídia criamos as webcelebridades, elas podem ser qualquer um. (teamtapper.com) Porém, diferentes das celebridades da mídia analógica, não são artistas de novela ou música que fazem algo excepcional, são pessoas comuns. Antes o indivíduo se tornava famoso por fazer algo, hoje essa lógica se inverteu ou nem existe: não é necessário fazer algo para ser famoso. Como essas pessoas conseguem ter tantos seguidores?
Ser conhecido já pode tornar o indivíduo especial. Hoje todos desejamos ser celebridades, seja no ciclo de amigos ou no país todo. A sensação de ver sua publicação repleta de comentários ou respostas é mais satisfatória do que saber que a mensagem foi transmitida. Para alcançar esse objetivo as pessoas publicam a vida com elementos de espetáculo e efeitos especiais.
Para ganhar peso, consistência e inclusive existência, é preciso estilizar e ficcionalizar a própria vida como se pertencesse ao protagonista de um filme. Por isso, cotidianamente, os sujeitos destes inícios do século XXI, familiarizados com as regras da sociedade do espetáculo, recorrem à infinidade de ferramentas ficcionalizantes disponíveis no mercado para se autoconstruir. A meta é enfeitar e recriar o próprio eu como se fosse um personagem audiovisual. (SIBILIA, 2008).
Porque foi criado um apartamento apenas para digital influencers
A Village Marketing trabalha como uma agência que conecta empresas a personalidades das redes sociais, para posts publicitários. Vickie Segar, fundador da Village Marketing, notou como os digital influencers tinham dificuldades em arrumar cenários para tirar fotos. Alguns chegavam a alugar quartos de hotel ou visitar lojas de móveis. Compreendendo essa demanda do digital influencer precisar “glamourizar” o cotidiano em posts, a Village Marketing teve a ideia de um apartamento adaptado às redes sociais.
“Espaços como esse são ouro para eles, porque eles podem ter um lugar que parece um lar para tirar fotos de momentos caseiros nele”, comenta Segar.
A decoração do apartamento tem todo o planejamento para ser fotografado. Mirando no público feminino, paredes, móveis e até utensílios domésticos são cobertos por tons de branco, rosa e dourado. Dando um ar de luxo, mas sem perder o requinte.
Porém, essa ideia de cotidiano rico é tão frágil quanto a ideia que a Village Marketing deseja passar. No imóvel há uma biblioteca em que os livros estão escolhidos não de acordo com o conteúdo, mas de acordo com a harmonia das cores na capa. As paredes possuem quadros rosas de empoderamento feminino, como “The future is female”. Mas eles estão lá com um claro intuito de servir de objeto de posts, não como demonstrativa de luta do feminismo.
https://www.instagram.com/p/Bn1Tsi5HryM/?utm_source=ig_embed
“Nós queríamos que eles tivessem um lugar em que é possível se sentir confortável como no momento de tirar os sapatos”, comenta Segar.
https://www.instagram.com/p/Bnlon6nldd-/?utm_source=ig_embed
Nesses 223m² vários digital influencers já postaram suas fotos. Porém, vão de 954 likes a 4.378, no máximo. Não são pessoas realmente personalidades que possuem porte para bancar uma vida de luxo, mas que pagam para tentar vender uma imagem equivalente e firmar-se como famosa por um cotidiano fantasioso. Não são a personalidade maceioense Gabriela Sales (@ricademarre no Instagram) que faz fama de sua beleza e sua vida rica.
Quem está por trás das fachada?
As redes sociais oferecem esses instrumentos e estão sempre implementando mais. Na interatividade online é mais fácil encenar um personagem. O Instagram é a máxima expressão narcisista da atualidade. Uma rede social de imagens, mas os perfis, em grande maioria, estão abarrotados de fotos pessoais sem qualquer conteúdo a mais. Essas publicações geram curtidas e comentários, por mais que em todas as fotos seja a mesma pessoa em poses diferentes. Nessas imagens é necessário construir uma fachada, sempre sorridente e de bem consigo.
Ainda no Instagram, os stories chegaram depois à rede social e a população rapidamente respondeu à “urgência” daquele recurso. São pequenos vídeos de até 15 segundos num feed a parte que expira em 24 horas. As pessoas passaram a usar mais os stories do que o recurso tradicional do Instagram. Os perfis das webcelebridades possuem dezenas de stories diários, pois é a exposição que sustenta sua fachada.
Carlinhos Maia (@carlinhosmaiaof) é um exemplo. Ninguém sabe qual era sua ocupação antes de ter 10,3 milhões de seguidores. Seu perfil é pura exposição do cotidiano, veiculado como espetáculo. A “vila” é onde ele mora e ele faz de seus familiares e amigos personagens. Seu sobrinho Mogli sempre é exibido como uma criança “birrenta”. Foi necessário que a mãe do “menino lobo” fizesse de seu próprio perfil do Instagram um espaço para publicar sobre o filho e assim aceitar a sombra da fama do irmão.
Os stories de Carlinhos Maia são o segundo mais vistos do mundo, atrás apenas de Kim Kardashian. As suas publicações rendem mais de um milhão de curtidas cada. Carlinhos Maia não diz que é humorista em sua biografia, portanto podemos interpretar que ele se vê com alguém comum, sem ocupação fora do Instagram. Mesmo assim, em setembro de 2018, Carlinhos Maia recebeu o título de Barão de Penedo.
A sua exposição gera lucro para empresas
As redes sociais não estão totalmente passíveis às novas configurações sociais da cibercultura. Além de ferramentas, as redes sociais são serviços oferecidos por empresas. O Facebook e Twitter possuem ações em venda na bolsa de valores, ou seja, sob influência dos interesses privados e do mercado.
A grande liberdade no Instagram, empresa do Facebook, para criar perfis comerciais não é em vão. Pessoas comuns que criam perfis comerciais podem ver as estatísticas de visitas e interações, para sempre se esforçarem a ampliar seu alcance. Ao ampliar o alcance, o uso de terceiros ao Instagram tende a aumentar.
Entre uma seção e outra de stories, o Instagram adicionou anúncios pagos por empresas, o valor é medido de acordo com o alcance que os próprios usuários/produtores/consumidores geram entre si.
A monetização também ocorre entre indivíduos e Instagram. Retomando a linha ser antes de fazer para conquistar a fama, vemos o movimento de pessoas que pagam à rede social para que suas publicações sejam impulsionadas e tornem-se webcelebridades. O desejo de que sua vida privada seja publicamente aprovada.
Não é de se estranhar que Gabriela Pugliesi, uma das pessoas mais famosas do Brasil no Instagram, tenha na biografia de perfil a frase “welcome to my life” – “bem-vindo à minha vida” traduzido para português.
REFERÊNCIAS
HEIM, Michael. THE METAPHYSICS OF VIRTUAL REALITY. Oxford: Oxford University Press, 1993.
MARTINO, Luís. TEORIA DAS MÍDIAS DIGITAIS: LINGUAGENS, AMBIENTES, REDES. Rio de Janeiro: Vozes, 2014.
LEVY, Pierre. O QUE É O VIRTUAL. São Paulo: Ed. 34, 1996.
WORCMAN, Karen. Narrativas digitais: eu, nós e quem mais? A relação entre histórias de vida e museus digitais. In: BASTOS, Maria; OSWALD, Couto; WORCMAN, Karen. NARRATIVAS DIGITAIS, MEMÓRIAS E GUARDA. Curitiba: CRV, 2014.
MERCKLÉ, Pierre. SOCIOLOGIE DES RÉSEAUX SO- CIAUX. Lyon: La Découverte, 2004.
GOFFMAN, Erving. A REPRESENTAÇÃO DO EU NA VIDA COTIDIANA. Petrópolis: Vozes, 1985.
DALMASO, Silvana. A VIDA EXPOSTA NAS REDES SOCIAIS: Apontamentos sobre identidade, construção e representação do eu. In: Simpósio Nacional da Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura, VII, 2013, Curitiba.
SIBILIA, Paula. O SHOW DO EU: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
GERMANO, Idilva; NOGUEIRA, Maria. A DIFUSÃO DAS REDES SOCIAIS DIGITAIS E AS NOVAS EXPRESSÕES DO EU in Revista de Psicologia. Fortaleza, v. 7, n. 2, 2017 (julho-dezembro).
MAHESHWARI, Sapna. A PENTHOUSE MADE FOR INSTAGRAM. The New York Times. 30 de setembro de 2018. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2018/09/30/business/media/instagram-influencers-penthouse.html> Acesso em: 10 de novembro de 2018.
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