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Porto Alegre e New Orleans, nos EUA, passam a compartilhar de uma triste história: uma gigantesca inundação que deixou inoperáveis suas respectivas estruturas. Ambas regiões de ricos patrimônios culturais, esses municípios — e suas respectivas regiões metropolitanas — foram levados a seus limites por eventos climáticos extremos: a Grande Porto Alegre com sua enchente, New Orleans com o furacão Katrina.
Os aprendizados pós-Katrina podem ser de grande valia para o povo gaúcho. Diante das recorrentes chuvas no Rio Grande do Sul, seriam ensinamentos que se tornariam ainda mais cruciais para a resiliência da região.
Alertas foram subestimados
O Brasil, assim como o mundo, vem acompanhando nos últimos anos, uma série de desastres ambientais de crescentes proporções. Em 2021, foi a região serrana do Rio de Janeiro. Em 2023, tivemos São Sebastião no litoral paulista. O desastre que se abateu sobre o Rio Grande do Sul na última semana não é apenas o mais recente, mas também o maior deles.
A região metropolitana de Porto Alegre vem sofrendo com inundações com cada vez mais frequência. Seu sistema de proteção contra enchentes foi criado após a grande cheia de 1941. Ele é composto por 14 comportas metálicas que ficam no muro da Mauá (centro da cidade) e sob a Avenida Castelo Branco, além de 23 casas de bomba que devolvem ao lago Guaíba a água acumulada em bairros próximos, e mais de 68 km de diques internos e externos.
Ocorre que as águas ultrapassaram os níveis seguros três vezes em 80 anos (1941, 1967 e 2015) e três vezes apenas em 2023. As duas maiores cheias históricas do Guaíba, até então, ocorreram em um intervalo de apenas 55 dias na última primavera. A região sofreu dez eventos de chuvas extremas em apenas 12 meses, entre junho de 23 e maio de 24. Vários municípios criados às curvas de rios gaúchos já acumulavam perdas estruturais e financeiras nos últimos meses. Modelos de previsão desenvolvidos no Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS já apontavam a probabilidade do que efetivamente veio a ocorrer. Aparentemente, os avisos não foram devidamente levados a sério. E o sistema de proteção da capital gaúcha falhou — por aparente falta de manutenção. O que ocorreu em maio de 2024 foi um desastre anunciado.
Tais comportas, de qualquer forma, não protegeriam alguns dos municípios mais arrasados na região, como Eldorado, Canoas, São Leopoldo, Muçum e praticamente todo o vale do Taquari.
Trocas de acusações entre governos locais e federal já ocorrem. A prefeitura de Porto Alegre afirma que a verba prometida por Brasília em novembro de 2023 (após a então grande chuva), até agora não teria sido liberada. Por sua vez, a prefeitura é acusada de sucatear o DMAE, órgão responsável pela manutenção do sistema de prevenção a enchentes. O governo gaúcho sanciona lei que flexibiliza a proteção a APPs para a construção de barragens e parece ignorar um plano de prevenção criado em 2017. No Congresso Nacional, tramita o que os ecologistas chamam de “pacote da destruição” — mais de 20 projetos de lei que em teoria fragilizam a legislação ambiental atual no que muitos alegam ser em prol da especulação imobiliária e pecuária. A essa altura já não deveríamos todos considerarmo-nos “ecologistas”?
New Orleans: um exemplo
Lá nos Estados Unidos existe uma agência federal para o controle de desastres, a FEMA. Tal agência foi duramente criticada por sua lenta responsividade após o Katrina. O Brasil não possui tal estrutura. Temos a Defesa Civil, que atua mais na resposta a emergências do que em prevenções propriamente ditas. Mas os aprendizados da FEMA durante a crise de 2005 pode direcionar parte dos esforços dos governos gaúcho e brasileiro.
Na própria semana da destruição de New Orleans, o governo estadunidense liberou um pacote emergencial de U$10 bilhões para a região e o envio de 7.200 soldados. Organizações não-governamentais — lideradas pela Cruz Vermelha — arrecadaram U$4.25 bilhões em doações. Ao final, estima-se que a reconstrução da região e a realocação de pessoas tenha custado U$125 bilhões (R$650 bilhões). Tais valores (não atualizados) referentes aos custos do Katrina, são equivalentes a 7% do PIB brasileiro.
Nos Estados Unidos, muito se questionou se dinheiro federal deveria ser usado para a reconstrução de New Orleans ou se ela deveria ser simplesmente abandonada. Foram três os principais argumentos que levaram ao investimento federal para sua reconstrução:
- A cidade ser considerada um patrimônio cultural para os Estados Unidos assim como Veneza está para a Itália;
- A manutenção do sistema de diques que protegia a cidade — e falhou — era uma obrigação dos engenheiros do Exército Estadunidense;
- A exploração de petróleo na costa da Louisiana gerava fundos federais mais que suficientes para melhorar o sistema de diques de sua principal cidade.
Pelo menos 2 dos 3 argumentos acima não se aplicariam à capital gaúcha.
Bairros inteiros precisaram ser reconstruídos em New Orleans. Do zero. Com planejamento e arquitetos, num projeto de grandes proporções, a principal região habitacional a ser reconstruída na cidade é a District 4. Dentre as muitas coincidências dos eventos observados, 4º Distrito é como é chamada a região mais afetada em Porto Alegre, onde a Arena do Grêmio, o shopping DC Navegantes e tantas residências hoje aparecem parcial ou completamente submersas.
Importante lembrar que o atual desastre natural da Grande Porto Alegre e interior do Rio Grande do Sul, parece possuir proporções ainda maiores do que as observadas na Louisiana. Mais de uma dezena de municípios gaúchos praticamente não existe mais.
Aproximadamente 1 milhão de refugiados climáticos foram realocados do Golfo do México após o Katrina, sendo essa a maior diáspora da história dos EUA. Mais da metade das vítimas evacuadas permaneceu a um raio de até 400 km de sua cidade original, mas apenas 4 semanas após o desastre, os 50 estados do país já registravam a chegada de evacuados em 18.700 CEPs diferentes. 240.000 famílias (de um total de 1.5 milhão de pessoas atingidas) mudaram-se da região atingida para Houston (Texas), mais de 500 km ao oeste de onde antes viviam. No censo de 2020, 15 anos após o furacão, a população de New Orleans era 20% inferior à de 2005.
O futuro do Rio Grande do Sul
Ainda não sabemos ao certo quantas pessoas — ou cidades inteiras — precisarão ser realocadas no Rio Grande do Sul. Mas, muito provavelmente, nem todos conseguirão regressar aos locais onde residiam até abril de 2024. Em entrevista a BBC Brasil, o ecólogo e doutor Marcelo Dutra da Silva afirmou que cidades inteiras precisarão mudar de lugar, saindo de áreas de risco e seguindo para outras mais resistentes às variações climáticas extremas — cada vez mais recorrentes.
Nos EUA, a FEMA, em conjunto com o governo federal, forneceu assistência habitacional (subsídio de aluguel, hotel ou doação de motorhomes, assim como dinheiro para a reconstrução de residências) a mais de 700.000 solicitantes — famílias e indivíduos. Apenas 1/5 dos motorhomes prometidos foram entregues, agravando a escassez de moradias na cidade de New Orleans. No Brasil isso pode ser possivelmente feito em um sistema estilo “Bolsa-Família” do Governo Federal com ações especificas de liberação de crédito por parte da Caixa. E pressão popular tem sido feita para realocar parte do bilionário fundo partidário para a recuperação das regiões afetadas.
Pós-Katrina, um meticuloso relatório técnico de quase 300 páginas foi elaborado pelo U. S. Army Corps of Engineers para prevenir novos casos similares e recuperar a região atingida. Tal documento pode ser de utilidade para as autoridades gaúchas e brasileiras nas etapas que estão por vir.
Os investimentos feitos no estado e o trabalho de prevenção surtiram efeito na Louisiana: em 2021, a região recebeu uma outra grande tempestade, Ida — um furacão de categoria 4 –, e as novas estruturas resistiram à força da intempérie. Isso é um ponto de esperança para Porto Alegre e seu futuro. Mas muitos meses de trabalho, planejamento e engajamento da população, da iniciativa publica e privada deverão transcorrer até que a capital gaúcha possa ter mais tranquilidade. Políticas de adaptação precisam ser elaboradas e seguidas. Já o futuro de grande parte da região metropolitana parece mais incerto. Como proteger e realocar os mais vulneráreis, precisará ser não apenas uma preocupação imediata, mas também de médio e longo prazo.
Em 2016, o Governo Federal criou o Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima (PNA). Pouco conhecido, ele poderia ser reformulado para considerar alterações climáticas cada vez mais extremas e facilitar os repasses emergenciais a estados e municípios. O Brasil nunca foi muito acostumado a anteceder-se a problemas. E as políticas públicas parecem ser normalmente de curta duração e de cunho eleitoreiro. Nossas mudanças precisam ser profundas. Fica a esperança de que desse sofrimento que hoje une a população gaúcha e brasileira em um laço de solidariedade, emerjam políticas de prevenção efetivas que protejam nossa população dos crescentes e futuros eventos climáticos.
Texto originalmente publicado no LinkedIn do autor.
Veja também: Como fazer doações para o Rio Grande do Sul de forma segura
Revisado por Glauco Vital em 10/5/24.
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