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Afundando nas sombras do Brasil, Vale O Escrito – A Guerra do Jogo do Bicho é uma série documental que joga luz na realidade nua e crua de um dos negócios mais clandestinos do país. A produção desbrava os segredos do Jogo do Bicho, onde as famílias poderosas ditam as regras.
Do surgimento da Cúpula da Contravenção nos anos 1970 até as polêmicas que decorreram do jogo, a série tece uma trama complexa e interconectada. É como uma novela da vida real e uma crítica direta à sociedade que fecha os olhos para esse lado obscuro.
Do que se trata o documentário?
Em uma imersão bastante intrigante e rica em detalhes, Vale o Escrito – A Guerra do Jogo do Bicho revela os bastidores sombrios de um dos negócios mais secretos e lucrativos do Brasil.
A série documental de sete episódios desafia fronteiras legais e desvenda a teia que compõe o universo do famoso e conhecido Jogo do Bicho — prática ilegal que costuma ser liderada por representantes de famílias poderosas. Apesar de se tratar de um assunto que muitos sabem naturalmente pela boca do povo, ele acaba sendo uma pauta que todos, na realidade, só têm conhecimento por alto. Já é comum termos noção do que seriam bicheiros e seus envolvimentos com o Carnaval, por exemplo, mas o buraco é muito mais embaixo.
Para se entender um pouco melhor, o documentário busca mergulhar nos relatos diretos de bicheiros, herdeiros e mulheres que, corajosamente, expõem a dinâmica crua desse negócio que desafia as leis brasileiras. Inclusive, alguns deles falam publicamente sobre toda a história pela primeira vez.
O primeiro tema abordado acaba sendo a formação da Cúpula da Contravenção, criada nos anos 1970. Esse grupo de chefões delineou estrategicamente os territórios da cidade do Rio de Janeiro a fim de estabelecerem uma espécie de paz armada que pudesse evitar conflitos e guerra. Tendo isso como base, os episódios logo exploram as origens do Jogo do Bicho mais afundo e desvendam todos os tipos de polêmicas ao longo do tempo.
Personagens reais
A respeito dos personagens do documentário, eles compõem grande parte do enredo e, se não fossem por seus depoimentos, muito da história poderia ter sido contada diferente. Acredito que a parte mais interessante de todo o projeto seja justamente a aparição de cada um, uma vez que são a partir de seus depoimentos que vamos captando toda a situação de uma forma bastante profunda.
O documentário do Jogo do Bicho é uma verdadeira tapeçaria de narrativas, onde todas as figuras se entrelaçam de uma maneira extraordinária. Por mais que já tenhamos uma noção, é ainda surpreendente quando vemos que todos os personagens são interligados de alguma forma. Além do mais, a produção também ajuda a criar um panorama geral e vívido desse universo que, até então, era somente sobre o jogo em si. Quando percebemos, toda a história acaba se desenrolando e se ramificando para uma grande situação em que já nem se trata mais sobre disputa, e sim sobre uma guerra bastante sangrenta e perigosa.
A verdade é que é impossível não comparar o conteúdo com o clássico O Poderoso Chefão, porque, assim como na obra cinematográfica, os membros da quadrilha do jogo são apresentados com a mesma complexidade e nuances de personagens fictícios. Isso ocorre desde o início, quando conhecemos um pouco mais sobre o que é a primeira geração da Cúpula da Contravenção com figuras como Miro Garcia, Capitão Guimarães, Anísio Abraão David e Castor de Andrade. O grupo de bicheiros se forma na intenção de estabelecer uma organização entre os territórios na cidade, mas futuramente, com novos membros nas famílias de cada um, a ambição parece ser o que permeia no sangue e nas árvores genealógicas.
O documentário do Globoplay também conta com relatos de diretores de escola de samba e comentaristas de carnaval, inseridos nesse mosaico e que ajudam a trazer uma dimensão cultural à produção. Suas visões sobre o impacto do jogo no carnaval e na comunidade, assim como suas experiências pessoais com os envolvidos, enriquecem a narrativa e revelam camadas multifacetadas da história. Já os membros da quadrilha, com opiniões claramente fortes, personificam a intensidade e a brutalidade a esse mundo clandestino.
Há ainda a participação de especialistas, jornalistas, historiadores e delegados, que adicionam uma camada de autoridade e contexto às histórias contadas. Cada um desses personagens reais também contribui para a compreensão do contexto social, histórico e legal que envolve o Jogo do Bicho. É a partir das suas análises e perspectivas, que o espectador ganha um olhar mais crítico sobre as ramificações da prática.
Mas acredito que o grande protagonismo fique com Shanna Garcia, filha do falecido bicheiro Maninho Garcia, e Bernardo Bello, ex-marido de Tamara Garcia e genro de Maninho. A meu ver, ambos são as figuras principais por conta do embate que sempre ocorreu dentro da família. Mesmo que tenhamos a oportunidade de ouvir o lado de pessoas ligadas a eles como Tamara e Sabrina Garcia, mãe das filhas de Maninho, toda a trama é movida pelos depoimentos dos dois que estão sempre em discordância.
Assim, o documentário se desdobra como uma novela, onde os personagens, reais e impactantes, são fundamentais para conduzir todos os episódios. A imersão na história acaba sendo inevitável por conta disso, afinal, cada personagem é uma peça crucial nesse quebra-cabeça, onde a resolução dos conflitos não se dá à base da justiça, mas através das complexidades das relações humanas e das reviravoltas.
Trama densa e atual
A essa altura, todos sabemos que falar do Jogo do Bicho é entrar em assuntos graves e de caso de polícia, por isso, não existe muita escapatória no documentário a não ser entrar nesse assunto de cabeça. O que difere e chama atenção é justamente a proposta de se aprofundar sem medo nesse mar de violência e mistério, até porque muitos dos casos de seus envolvidos têm relação com a família Bolsonaro, o assassinato de Marielle Franco e até outras investigações sem respostas.
Para abordar tudo isso, o documentário precisa fazer toda uma recapitulação até chegar aos dias atuais. A exploração precisa dos detalhes nos depoimentos e cenas reais, retrata as relações, rivalidades e alianças que caracterizam esse submundo.
Todos os depoimentos relembram a época de maneira bem visceral, transformando o documentário em uma viagem no tempo. Os personagens se tornam cronistas de um passado tumultuado e compartilham não apenas fatos, mas também emoções e dilemas pessoais. O mais interessante é que isso é feito sem pressa, porque cada um dos sete episódios é focado em um personagem específico. É nesse estilo que alguns acabam sendo mais densos que outros, como é o caso do quinto e do sexto que contam melhor sobre quem é Adriano da Nóbrega, ex-miliciano já falecido, e Rogério Andrade, o contraventor mais poderoso atualmente. A Guerra do Jogo do Bicho vai ganhando mais tensão gradativamente nesse aspecto.
O que eu pude sentir é que, por mais que tenhamos ciência de que estamos assistindo a uma série documental, que justamente fala sobre fatos verídicos, ainda assim, é só a partir da metade dela que nos sentimos próximos da história. Acredito que isso se deva ao fato de que nada teve um fim e assim como alguns personagens fazem questão de dizer, tudo ainda pode acontecer.
Em resumo, se trata de uma produção pesada na maior parte, especialmente pela inclusão de cenas reais o tempo todo, contando a história organicamente como um filme comentado. Recortes de entrevistas, imagens e vídeos de arquivos pessoais, programas de TV antigos e até ilustrações ajudam a enriquecer esse argumento, como também dar uma melhor dinamicidade.
A história é basicamente uma novela, onde não adianta resolver os conflitos à base da justiça. É notório que sempre vai haver banho de sangue e o documentário explora essa explicação muito bem.
Pontos positivos e negativos
Como já sabemos, com muita ousadia, a produção não hesita em evidenciar a trama de decisões dentro dessa máfia brasileira, revelando a complexidade e a dureza que envolvem cada escolha. Ao contrário de buscar qualquer forma de deixar o documentário mais cinematográfico ou glamuroso de alguma maneira, a narrativa se propõe a realmente transparecer a realidade de um império que se mantém à beira da legalidade, ironicamente.
A partir do primeiro episódio, comecei a entender a razão do público ter gostado tanto do projeto, no entanto, percebi alguns pontos negativos como a falta de uma melhor abordagem sobre a história do Jogo do Bicho em si. Apesar de comentado sobre como ele se iniciou na cidade do Rio de Janeiro, ainda achei que o roteiro poderia ter se aprofundado um pouco melhor nessa parte, visto que esse é um assunto um tanto polêmico e que muitos só têm conhecimento apenas do nome.
No final de tudo, você ainda sai se perguntando sobre o motivo do jogo ser ilegal e ainda se manter às claras como é até hoje. Uma vez que o documentário se propõe a falar sobre toda a história dele desde o começo, seria uma boa ideia esclarecer ou dar uma nota sobre essa questão. Em pleno século 21, como esse jogo ainda consegue existir?
No mais, o documentário do Globoplay passeia, sem forçar, por diversos campos, acentuando o drama quando necessário, assim como suspense, a tensão e a emoção. Existe uma variedade de tons que combinaram muito bem e foram, estrategicamente, colocados nas horas certas. A participação de Vinicius George, Delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, serve de exemplo, quando é necessário amenizar o clima. Mesmo o assunto sendo delicado, ele contribui com comentários sarcásticos e que dão alívio cômico na medida certa. O carnavalesco Milton Cunha também conseguiu essa façanha, o que faz aproximar ainda mais o público da produção, afinal, é clássico do povo brasileiro conseguir debochar e rir de situações até pesadas.
Por causa disso, a abordagem fica clara desde os primeiros episódios e não surpreende o espectador negativamente. A estrutura do roteiro também acompanha essa premissa perfeitamente e nada se perde. É o tipo de produção que você consegue adentrar seu universo com facilidade e ainda ficar agarrado a ele até o final.
Mas algo que vale destacar, uma vez que o Jogo do Bicho mostra todo um histórico de maldade e crime dos envolvidos, é que o documentário não é nada parcial ou tendencioso. A todo momento, ele deixa as opiniões dos personagens livres e sem cortes. Se trata de uma série para mostrar todos os detalhes da trama, mas o julgamento fica por conta do espectador. Por muitas vezes, apesar desse não ser o objetivo principal, me senti num júri, onde todos davam suas versões e eu me mantinha observando, analisando e tirando minhas próprias conclusões sobre cada figura.
No fim, A Guerra do Jogo do Bicho termina mostrando a realidade de como ela ocorreu e ainda pode ocorrer, do jeito que esperamos ver nos créditos de alguma produção de suspense, por exemplo. Não acredito que a intenção seja provocar tensão ou medo, mas justamente abordar que estamos presenciando uma novela e da vida real.
Conclusão
Será necessário uma nova cúpula para resolver todos esses esquemas decorrentes do Jogo do Bicho ou a antiga ainda tem algum poder para acabar de vez com a guerra? Essa é a questão que fica no final de tudo. Hoje em dia, temos os sucessores de cada um dos integrantes da primeira geração e que foram patronos de algumas das maiores escolas de samba do Rio de Janeiro. Apesar disso, fato é que o próprio documentário constata que muito provavelmente, não existe dar fim à guerra se não passar pelos bicheiros Rogério Andrade e Bernardo Bello, dois oponentes que configuram uma “briga de cachorro grande” até hoje.
No mais, o documentário não é apenas uma incursão cinematográfica, mas uma jornada visceral pelos becos e esconderijos onde as apostas são feitas, e as vidas são arriscadas. A série desafia o espectador a confrontar uma realidade que, muitas vezes, é convenientemente ignorada. A produção não é apenas uma narrativa sobre contravenção; é uma crítica contundente à sociedade que permite a existência e a prosperidade desse submundo. Ao revelar os segredos ocultos, o documentário desafia o público a refletir sobre as raízes de uma das máfias mais complexas e duradouras do Brasil.
De fato, as palavras da jornalista Patrícia Kogut são certeiras e eu não poderia concordar mais quando o documentário se refere a uma novela sem heróis e só com vilões.
Vale O Escrito – A Guerra do Jogo do Bicho é um projeto desenvolvido pelo Conversa.doc, segmento de documentários vinculado ao programa Conversa com Bial, com Fellipe Awi na direção e narração do apresentador Pedro Bial. Ele se encontra disponível no Globoplay com o primeiro episódio liberado para não assinantes.
Devido ao tamanho sucesso, a série documental também está prevista para ganhar uma segunda temporada no ano que vem.
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Revisão do texto feita por: Pedro Bomfim
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