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Após muitos anos de especulações e rumores, a Netflix finalmente lançou a tão aguardada série live-action de One Piece. A obra, originalmente escrita por Eiichiro Oda, é conhecida por ser o mangá mais popular do mundo e cativa multidões de fãs há mais de 20 anos. A história é famosa por sua longa duração e pela habilidade de mesclar tons de comédia e drama em uma narrativa sobre piratas em um mundo assolado por terríveis vilões e uma marinha que nem sempre está lá para defender o povo.
Na review de hoje, veremos como a adequação da obra para uma série com atores se mostrou uma tarefa quase impossível e salientou um roteiro inconsistente, porém que atinge os pontos principais que deveriam ser alcançados para podermos dizer: “Isto é One Piece!”.
Os desafios de se adaptar One Piece
Num primeiro plano superficial, a história de One Piece se passa em um mundo fictício de piratas e aventuras, no qual os personagens exploram ilhas exóticas, enfrentam perigos e buscam por tesouros. O protagonista principal é Monkey D. Luffy, um jovem que adquire poderes especiais após comer uma fruta do diabo (Akuma no Mi) e decide se tornar o Rei dos Piratas. Luffy forma uma tripulação chamada Os Chapéus de Palha e embarca em uma jornada para encontrar o tesouro conhecido como One Piece, que é dito ser o maior tesouro de todos os tempos, escondido pelo lendário pirata Gold Roger.
À medida que os capítulos do mangá avançam, os leitores têm a oportunidade de contemplar algumas das narrativas e discussões que Eiichiro Oda deseja abordar por meio de sua obra. O que inicialmente parecia ser apenas uma aventura divertida e descontraída revela-se algo genuinamente especial, com uma personalidade única, que discute temas como racismo e desigualdade social e apresenta países em contextos políticos extremos como ditaduras ou monarquias absolutistas.
Diante disso, a série produzida pela Netflix encara um desafio monumental: capturar a essência de One Piece em apenas oito episódios de sua primeira temporada. Além disso, não há sequer garantia de continuação, dada a reputação da empresa de cancelar projetos com desempenho financeiro aquém do esperado em seu catálogo. Como é possível adaptar 100 capítulos da saga de East Blue em pouco mais de oito horas de série?
O conceito de adaptação, em sua definição básica, é o processo de transformar uma obra original de um meio, como um livro, jogo, peça teatral, quadrinho, ou qualquer outra forma de mídia, em outra forma de mídia. O objetivo da adaptação é recontar ou reinterpretar a história, personagens e elementos da obra original de uma maneira que seja adequada ao novo meio, mantendo ao mesmo tempo o espírito e a essência da obra original.
Podemos afirmar que a adaptação de One Piece pela Netflix foi bem-sucedida em trazer o universo de Eiichiro Oda para as telas? Sim, podemos. Podemos ser mais exigentes e esperar algo melhor de uma das maiores produtoras de entretenimento do que uma avaliação simples como “foi razoável”? Claro que sim. Ao tentar condensar em um curto espaço de tempo uma história que se destaca por sua grandiosidade e o tempo dedicado ao desenvolvimento de personagens e tramas, a obra se propõe a uma missão quase impossível, fazendo mudanças e concessões que nem sempre funcionam como deveriam.
Ao buscar a reestruturação para uma melhor adequação no novo formato, One Piece da Netflix não se compromete plenamente com essas modificações e oscila indefinidamente entre contar uma versão resumida do mangá e incluir cenas icônicas como grandes fanservice, trazendo referências para agradar os fãs do original. Alguns momentos importantes e frases marcantes dos arcos da saga de East Blue, que compreende os 8 episódios da série, se tornam esvaziados de sentimento e uma sensação de desperdício é muitas vezes sentida.
No entanto, a série consegue preservar os elementos essenciais que definem o universo de One Piece: a relação entre seus personagens, a constante dualidade dos principais poderes mundiais e, principalmente, a diversão. A adaptação de One Piece pela Netflix, apesar de suas falhas, é uma obra divertida de assistir e desempenha com sucesso seu papel de introduzir novos espectadores ao mundo criado por Eiichiro Oda, com um elenco que demonstra paixão por seus papéis, o que transparece em cada cena da temporada.
Há um evidente esforço da produção em tornar cada um dos arcos narrativos do início do mangá mais dinâmicos, evitando que pareça uma mera versão apressada da história que já conhecemos. Mudanças são inevitáveis, e neste review, não haverá críticas do tipo “O Luffy nunca diria isso” ou “Não foi assim que aconteceu de verdade”, pois devemos encarar a obra da Netflix como uma expressão artística original que se baseia em uma fonte, mas precisa dessas adaptações para funcionar nesse novo formato de mídia.
Além disso, o tempo não é o único desafio enfrentado em uma adaptação de One Piece. O estilo de humor caricato da obra original complica a vida daqueles encarregados de dirigir cada cena em um live action. Esse humor extravagante, por vezes, lembra as animações dos anos 50, como Pernalonga ou Pica-Pau. One Piece é algo verdadeiramente único, e transferir essas características para situações com atores é, de fato, uma tarefa extremamente complicada.
Espectadores que não estão familiarizados podem ficar perplexos ao ver um oficial da marinha com orelhinhas de coelho em uma cena séria que aborda a corrupção dentro das altas esferas do mundo, ao mesmo tempo em que flerta com temas como racismo e extremismo ideológico. No entanto, isso é One Piece. A série não se envergonha de suas raízes e não tenta distorcer as características originais à la Dragonball Evolution e esse é um dos maiores acertos da Netflix e de seus showrunners.
Amanhecer da esperança
Devo admitir que minhas expectativas não estavam muito altas antes de assistir ao primeiro episódio da temporada. Como fã de One Piece, algumas das cenas apresentadas no trailer pareciam distorcer alguns dos personagens que tanto amamos e acompanhamos ao longo de anos de história. No entanto, fiquei extremamente surpreso quando, nos primeiros minutos do primeiro episódio, minha preocupação se mostrou completamente infundada.
Os dois primeiros episódios são um excelente exemplo de como realizar uma adaptação de uma obra tão vasta como One Piece. Uma das principais características do mangá é o desenvolvimento cuidadoso dos personagens ao longo de muitos capítulos, mas o live action precisou ajustar o ritmo de apresentação e incorporar elementos importantes de arcos futuros que, previamente, sabemos que não terão muito tempo para serem introduzidos na história.
A aparição de um membro da Baroque Works, as menções aos Piratas do Gato Preto e até mesmo a presença de Garp – que, no mangá, só é mostrado brevemente em uma capa no capítulo 92 e só será devidamente apresentado após mais de 300 capítulos – não são simplesmente atos de fanservice. Eles representam uma maneira pela qual a série conseguiu adiantar o desenvolvimento de personagens e conceitos daquele mundo de forma mais compacta e eficaz. A série estabelece seu próprio ritmo e o mantém consistentemente até o final da temporada, o que é um ponto muito positivo.
A representação de Luffy, que seria um desafio devido ao seu comportamento nada convencional, foi surpreendentemente bem executada nas telas por Iñaki Godoy. O ator conseguiu trazer uma nova interpretação desse personagem, mantendo os principais traços do protagonista original: ele é um jovem sonhador, impulsivo, preocupado com seus amigos e com a liberdade das pessoas. Além disso, a série consegue equilibrar esse personagem de forma a adaptá-lo adequadamente ao novo meio em que está inserido. Portanto, neste live action, vemos Luffy frequentemente em momentos de contemplação, o que o diferencia das versões do mangá ou do anime, permitindo que o público perceba que aquele personagem é um ser humano real.
No primeiro episódio, também conhecemos Zoro e Nami, interpretados por Mackenyu e Emily Rudd, respectivamente. Ambos são muito bem retratados, com Nami demonstrando um grande poder de persuasão e apresentada como uma ladra carismática. Enquanto isso, Zoro se distancia um pouco de algumas de suas características do início do mangá, se aproximando mais do personagem que conhecemos no futuro da obra, sendo menos brincalhão e mais sisudo.
Outro destaque dos primeiros episódios que merece uma menção é o Buggy. Interpretado por Jeff Ward, o palhaço tinha potencial para se tornar uma versão 2.0 do Coringa de Jared Leto, com suas loucuras e irritabilidade fora do tom. No entanto, o ator compreendeu o personagem de maneira brilhante, entregando uma versão de Buggy que mantém as características do original, enquanto adiciona uma nova camada de carisma, tornando-o um personagem ainda mais significativo nesta primeira temporada devido à sua relevância na trama.
Sobre a narrativa desses dois primeiros episódios, que abrangem Romance Dawn e Orange Town, as alterações realizadas pela série foram positivas, proporcionando um começo dinâmico para a história. Ao mesmo tempo, conseguiram apresentar os conceitos fundamentais e evocar os sentimentos de aventura, humor e drama. Apesar das mudanças significativas em Orange Town, onde a trama se concentra quase inteiramente no circo de Buggy, essas mudanças fazem sentido na nova versão da história e conseguem destacar as características dos personagens, aprofundando um pouco mais em cada um deles, além de introduzir o próprio palhaço, que será de grande importância no futuro da obra.
Por outro lado, o que não funciona tão bem é o flashback de Luffy com Shanks e os Piratas do Ruivo. A divisão das cenas ao longo de diferentes partes dos primeiros episódios e a interpretação pouco carismática de Shanks não conseguiram transmitir as mesmas emoções do original. Cenas icônicas, como a de Lucky Roux derrotando um dos piratas da montanha e demonstrando a força daqueles personagens de forma impactante, foram substituídas por sequências de ação menos empolgantes.
Apesar desses altos e baixos, os primeiros episódios representaram o surgimento da esperança de que o live action poderia, de fato, ser algo positivo e apresentar One Piece de maneira competente para um novo público.
O arco da mansão da Kaya
Originalmente conhecido como o Arco da Vila Syrup e responsável por introduzir o personagem Usopp do Bando do Chapéu de Palha, na série adaptada da Netflix, o segmento narrativo que engloba os episódios 3 e 4 da temporada deixa muito a desejar ao não explorar devidamente a Vila Syrup e ao apresentar Usopp de forma insuficiente. Sendo o ponto mais fraco de toda a temporada, o arco poderia ser renomeado simplesmente como Mansão da Kaya, devido à completa omissão da narrativa original que tinha como objetivo estabelecer a relação do personagem, famoso por suas mentiras, com a cidade onde passou toda a sua vida.
Como um vilão caricato e com efeitos visuais inconsistentes, Kuro (ou Klahadore) parece uma mistura de um antagonista de Lazy Town com um personagem da novela Os Mutantes: Caminhos do Coração. Com cenas que oscilam entre tons de terror na mansão e comédia, a série não conseguiu encontrar um tom coeso para o personagem e nem para o arco da Vila Syrup como um todo.
Outro ponto negativo é a caracterização de Usopp. No mangá, ele é apresentado como um guerreiro covarde e mentiroso, mas no decorrer do arco, ele demonstra coragem ao enfrentar quase todos os membros dos Piratas do Gato Preto para proteger a vila onde sempre viveu, revelando seu profundo vínculo com os habitantes e sua relação de amor e ódio com eles. Mesmo enfrentando dificuldades na batalha, ele se levanta e luta, mesmo sabendo que suas chances são mínimas, mostrando seu afeto pela vila e por Kaya por meio de suas ações.
No entanto, no live action de One Piece, todas essas nuances são deixadas de lado, e as características do personagem são mais destacadas por meio de diálogos do que por suas ações. Até mesmo sua relação com Kaya é menos impactante, sendo necessário que a obra crie uma amizade entre ela e a Nami para o desenvolvimento da personagem.
A presença da Marinha, representada pelo personagem Garp, parece mais uma versão da Equipe Rocket de Pokémon perseguindo o Pikachu ao longo de toda a temporada, e isso poderia ser melhor aproveitado. Essa abordagem, diferente do mangá e uma adição original a essa nova versão, faz com que a aparição de Koby e Helmeppo na Vila Syrup pareça um pouco deslocada e com pouca funcionalidade narrativa.
Apenas um aperitivo de Baratie
Nos episódios 5 e 6, que correspondem ao arco de Baratie, a série recupera um bom ritmo de adaptações e desenvolve seus temas e personagens de forma satisfatória. A decisão de remover o vilão original do mangá para adiantar o desenvolvimento da trama que culminaria no arco de Arlong Park é uma escolha acertada da série. Isso permite que a história desenvolva de maneira exemplar os personagens principais, como Luffy, Nami, Zoro e o novo Sanji, ao mesmo tempo em que apresenta novos personagens como Zeff, Mihawk e adianta um desenvolvimento do Arlong e suas temáticas. No entanto, mais uma vez, Usopp parece ficar em segundo plano na narrativa.
A caracterização do chef Zeff por Craig Fairbrass é simplesmente impecável. Tanto no visual quanto em suas ações nas cenas, o ator britânico consegue proporcionar uma interpretação excelente do dono do restaurante flutuante, o que eleva a intensidade da parte emocional durante o flashback de Sanji nos episódios. Da mesma forma, Steven Ward, no papel de Mihawk, oferece uma adaptação excelente do espadachim com uma personalidade altamente carismática e gestos corporais que se assemelham ao personagem de forma notável.
Os personagens passam por um notável amadurecimento ao longo da temporada. Luffy mostra uma maior compreensão dos perigos que o aguardam em sua jornada, e Zoro encontra uma nova motivação, embora seu flashback tenha sido introduzido de forma um tanto deslocada nos episódios anteriores. Nami também enfrenta um conflito interno, pois começa a considerar seus companheiros de equipe como verdadeiros amigos, mas ao mesmo tempo, assume uma responsabilidade maior que se tornará o foco dos últimos episódios da temporada.
Este arco é satisfatório, mas no final, serve mais como um aperitivo em comparação com a história original do restaurante. No entanto, é uma adaptação bem-vinda que cumpre o propósito de tornar a versão de One Piece da Netflix mais dinâmica, concisa e interessante do que se houvesse a tentativa de mostrar todos as lutas e vilões de uma forma corrida e pouco desenvolvida.
A lenda começa (ou não)
Os últimos episódios da série são bons. A história original do arco de Arlong Park é dita como um dos pontos mais altos de todo o mangá e não teria como ser diferente aqui no live action. Com Emily Rudd entregando uma ótima atuação, os últimos episódios evidenciam o acerto em apresentar o vilão homem-peixe, Arlong, de forma antecipada na história.
A interpretação de Emily Rudd é, sem dúvida, um dos maiores destaques de toda a temporada do live action de One Piece. Sua habilidade em retratar a personalidade forte da navegadora com uma pitada de malícia ao longo de todos os episódios sugere que a personagem passou por experiências difíceis em seu passado. A atuação de Rudd torna convincente o fato de que Nami se importa com as pessoas ao seu redor, mesmo quando suas ações parecem indicar o contrário.
Sem entrar em spoilers, existem cenas que demonstram as atitudes da personagem, mas em nenhum momento parecem comprometer suas verdadeiras convicções, graças às nuances da atuação da atriz. Ela consegue entregar com perfeição cenas icônicas que têm um forte impacto emocional.
As lutas no final da temporada são bem coreografadas, e é evidente que houve um esforço significativo por parte da equipe de produção da série para tornar esses momentos mais refinados, com uma qualidade técnica superior ao restante. A dinâmica entre Sanji e Zoro começa a se destacar de maneira divertida e cômica em vários momentos. Usopp finalmente ganha seu momento na série para mostrar que não é apenas um covarde e mentiroso, mas sim um dos personagens mais importantes e interessantes da obra. Por fim, a luta entre Luffy e Arlong é dinâmica e empolgante, com um desfecho satisfatório.
Apesar de não conseguir alcançar o mesmo patamar da versão original da história, o live action conseguiu traduzir bem as principais discussões ao redor da discriminação racial e de um vingativo extremismo que surge como um movimento contrário.
Por fim, temos a conclusão da perseguição de Garp e da Marinha. Embora em alguns momentos possa parecer desnecessária e desconexa em relação ao restante da série, é fundamental que One Piece comece a abordar temas como a corrupção dentro da instituição e as diversas interpretações de justiça. Mostrar que existem pessoas boas e ruins tanto na Marinha quanto entre os piratas é essencial para que o novo público compreenda a mensagem que Eiichiro Oda deseja transmitir.
Apesar de ter sido completamente omitido um arco importante do mangá, conhecido como o arco de Loguetown, as adições feitas pela adaptação ao longo de toda a temporada conseguem, em parte, preencher a lacuna deixada por essa parte da história. No entanto, a narrativa poderia ter se beneficiado com a inclusão de mais 2 episódios para que alguns temas importantes pudessem ser devidamente explorados.
Veredicto
A primeira temporada do live action de One Piece se esforça para recriar o mundo mágico concebido por Eiichiro Oda, e é evidente que é uma série produzida com grande paixão e dedicação. A eliminação ou alteração completa de algumas partes da história resulta em trechos originais interessantes que se adequam ao ritmo dessa nova versão da narrativa. No entanto, o roteiro demonstra certa relutância em abandonar alguns elementos de fanservice que foram incluídos, como se fossem uma obrigação para agradar aos fãs originais da obra.
Se compararmos o live action com o mangá ou o anime, a versão da Netflix estaria com certeza em um patamar abaixo. Entretanto, é uma série muito mais palatável para uma parte do público e que consegue com um certo milagre adaptar 100 capítulos em 8 episódios de 1 hora cada.
Na semana de lançamento da série, tive o prazer de comparecer a um evento promovido pela Netflix na Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. Durante o evento, eles trouxeram o barco Going Merry para que o público pudesse tirar fotos e explorar uma versão simplificada da icônica embarcação da obra. Foi uma experiência incrível ver muitos fãs apaixonados conversando na fila e expressando seu entusiasmo com essa nova versão da história. O live action conseguiu acertar em cheio ao agradar os fãs enquanto também atraiu novos espectadores para esse mundo incrível.
O título dessa crítica diz que entre altos e baixos, One Piece da Netflix entrega o mínimo. Esse mínimo diz respeito a ser uma versão simplificada da obra com uma condensação de suas ideias e personagens apresentados. Entretanto, o mínimo de One Piece já está acima de muita coisa produzida pela própria Netflix e outros serviços de streaming atualmente.
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Revisão do texto feita por: Pedro Bomfim (05/09/23)
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