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Navegar na internet é estar livre para acessar desde o Facebook ao Xvideos (quando sua mãe não estiver por perto, claro). Mas o que aconteceria se a sua provedora de internet decidisse em quais sites você pode entrar? Seria no mínimo irritante.
Essa será a nova realidade dos estadunidenses, pois a lei do fim da neutralidade foi revogada pelo FCC (espécie de Anatel dos Estados Unidos). Como isso pode impactar seus usuários? O Brasil está a salvo?
A conquista da neutralidade de rede
No Brasil, o Marco Civil da Internet (lei 12.965/2014) no artigo 9 diz: “O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação”. Essa é a nossa garantia para a neutralidade de rede.
Assim, não é possível restringir qualquer acesso a determinados sites, desde que a conta esteja sendo paga e o pacote de dados aquém do limite. Um ano depois, em 2015, os Estados Unidos também garantiram a neutralidade de rede com uma série de leis.
Entretanto, o FCC (Comissão Federal de Comunicações, em português) decidiu hoje revogar tais leis, sendo que foram as mesmas pessoas que 2 anos atrás as aprovaram. Votaram pela revogação os 3 republicanos (Ajit Pai, Michael O’Rielly e Brendan Carr), enquanto os 2 democratas (Mignon Clyburn e Jessica Rosenworcel) votaram contra.
Quais os interesses em revogar a neutralidade de rede?
Em 2015, a FCC considerou a internet um serviço de utilidade pública, e sendo gerido pelo mercado, o Estado precisaria impor limites para que a busca excessiva pelo lucro não prejudicasse os cidadãos. Com a anulação das leis, a internet volta ao setor de entretenimento. Isso era reconhecido pela FCC em 2015, agora não mais. Por quê?
Primeiramente é necessário entender o mercado de internet dos Estados Unidos. Observe esse mapa acima. Ele mostra qual operadora é a mais popular em cada estado. Entretanto, há toda uma organização.
Segundo o The Verge, “incrivelmente não há um mercado competitivo para acesso à internet” nos Estados Unidos. Isso se reflete no mapa. A Comcast é a empresa mais odiada do país, com o pior atendimento ao consumidor, mas porque ela é a mais usada na maioria dos estados?
Às vezes porque a troca de material é cara, em outras é porque é o único provedor de internet. Existe até mesmo um respeito entre as operadoras. Muito dificilmente uma operadora decide investir no “território de outra”. Para completar, a Time Warner Cable foi comprada pela Comcast, ganhando domínio de mais 8 estados.
Enquanto esses absurdos acontecem, Ajit Pai, presidente da Comissão Federal de Comunicações (FCC) esteve preocupado com a neutralidade de rede. Sim, ele acredita que melhorar a internet não é estudar outras formas de expandir o acesso a banda larga, acabar com o controle de estados por operadoras e o “caso de descaso” da Comcast. Ele decidiu derrubar a neutralidade de rede.
Ajit Pai justifica dizendo que a neutralidade de rede está atrapalhando os investimentos da operadoras. Entretanto, as próprias operadoras afirmam aos investidores que a neutralidade de rede nunca as prejudicou. Além disso, todas as gigantes da tecnologia, desde a Apple ao Facebook, já tornaram pública a desaprovação de acabar com a neutralidade de rede. Enfim, qual foi o real objetivo de derrubar a neutralidade de rede?
Por que uma internet livre se pode ser controlada?
A internet é um veículo midiático, mas não é tão controlado por empresas como a TV. Na internet você pode acessar qualquer site a qualquer momento. Qualquer um pode criar um blog e reproduzir conteúdo, ao contrário da TV, rádio e jornais.
Sabemos que o Facebook já foi flagrado alterando o feed dos usuários, como cobaias, além de vivermos numa era de propagandas virtuais cada vez mais invasivas. Entretanto, o pensamento dos defensores da queda da neutralidade de rede vai além, é obter o controle sobre a internet.
Sem a neutralidade de rede, os provedores de internet podem bloquear ou limitar a velocidade em sites selecionados. O próprio presidente da FCC reconhece essa possibilidade. O que isso pode impactar? O quanto as empresas quiserem, sem qualquer punição.
Mídia
A mídia poderá ser controlada. Imagine que o The Guardian publica uma notícia falando mal da Comcast. Por vez, a Comcast pode simplesmente bloquear o acesso dos seus clientes a esse texto, ou ao site todo. Não precisa nem avisar.
O modo como você vê vídeos e escuta música também pode mudar. Hoje a Tim tem uma parceria com o Deezer, para oferecer serviço sem cobrar pacote do dados. Mesmo assim, muitos amigos meus usam o Spotify. Sem a neutralidade da internet, a Tim pode impedir que seus clientes usem outros serviços que não sejam o Deezer.
A Claro poderia diminuir a velocidade de internet na Netflix, para as pessoas usarem o Claro Video. Isso pode parece fantasioso, mas aconteceu em julho desse ano. Nos Estados Unidos, A Verizon chegou a limitar a velocidade no streaming do YouTube e Netflix. Em testes, com o pacote de 80 Mbps, a Netflix apontava 10 Mbps. A Verizon não negou, disse estar testando um novo sistema de otimização de vídeo.
Chamadas de vídeo
Precisou fazer uma viagem, mas ainda quer manter contato com sua mãe? Em tempos sem neutralidade de rede, o seu provedor de internet pode bloquear o uso do Skype para que use o Google Duo. Entretanto, no estado de sua mãe a empresa dominante decidiu que o Google Duo terá velocidade reduzida em comparação ao FaceTime. E agora?
Novamente, não estranhe tanto. Em 2009, a AT&T bloqueou as chamadas do Skype no iPhone, decisão desfeita por pressão da FCC na época. Não aprendendo a lição, em 2012 a AT&T bloqueou o FaceTime (da própria Apple) no iPhone.
Política
Hackers e eleições são assunto de jornais há um bom tempo. Que tal agora tornar a interferência digital em política mais legalizada?
Vamos lembrar do mapa de divisão de operadora de internet por estado. Com o poder que cada uma agora tem para interferir na navegação dos clientes, os políticos enxergarão nelas novos meios de propaganda. As provedoras de internet estarão à venda, sendo mais atrativas dependendo de quais estados controlam.
Entre 2010 e 2014, a Verizon doou US$ 53 milhões para políticos. Não é diferente do Brasil. Empresas bancam a candidatura de políticos para garantir cadeiras no congresso e defender seus interesses.
Em uma pesquisa, 70% dos americanos apoiam que o Estado construa redes de banda larga, por baixa de competitividade, serviço ruim ou falta de cobertura. Usando os lobistas, as operadoras de internet conseguiram que pelo menos 20 estados americanos aprovassem leis contra redes estatais de banda larga. É preocupante o quão influente e gananciosas essas empresas podem ser.
Sem a neutralidade da internet, é possível que se prejudique o acesso às páginas da oposição. Não se impressione, em 2007 a Verizon barrou a troca de certas mensagens entre amigos, pois continham texto a favor do direito de aborto. A pressão popular fez a Verizon recuar. Curiosamente, Ajit Pai tem uma relação de longa data com a Verizon, desde 2001, sendo atualmente um executivo da empresa.
Lojas
Na Black Friday, a velocidade em que o site carrega é essencial. Afinal, quem gosta de esperar? Quanto mais lento, menos clientes entram no site e finalizam compras. Em um cenário futuro, lojas como Walmart podem fazer parceria de “descontos exclusivos” para assinantes de certa operadora. A parceria pode ir além a ponto da provedora de internet oferecer melhor velocidade ao Walmart e só. O mesmo pode acontecer com o Uber e suas concorrentes.
A internet será a nova TV a cabo?
A nova realidade da internet poderá ser como uma TV a cabo. Pacotes com serviços limitados. Uma família de baixa renda pode deixar de acessar toda a internet, para ter somente Facebook, WhatsApp e Netflix. Ou ainda pior, incluir no pacote um jornal que defenda os interesses da operadora.
Na TV, as pessoas mais pobres só podem assistir Globo, SBT e Record, enquanto os mais ricos possuem canais com conteúdo diferenciado, como Telecine Cult. A internet, um dos ambientes com menos segregação social, vai ser infectada pela desigualdade econômica. O que os mais pobres poderão acessar na internet?
Isso colocará em cheque a nossa liberdade, pois restringe o acesso à internet. Além disso, guerra vai acontecer entre as grandes empresas, como Google e Microsoft, não entre as startups. Porque quem vai poder pagar para interferir na internet são as grandes. Abrir novos negócios será ainda mais arriscado. Foi através da neutralidade de rede, permitindo a competitividade, que serviço como Spotify e Netflix fizeram sucesso.
Operadoras brasileiras querem tirar a neutralidade de rede
As empresas de comunicação no Brasil também estão se sentindo prejudicadas pela neutralidade de rede. Com a ajuda de políticos, as operadoras desejam modificar o Marco Civil da Internet. Acabamos de ver que não é uma boa ideia deixar nossa liberdade nas mãos de empresas que buscam unicamente o lucro.
A justificativa sendo utilizada é “com o avanço da internet das coisas e da digitalização das empresas, não faz sentido todos os clientes terem o mesmo tratamento”. Entretanto, o Marco Civil da Internet nada impede isso.
Segundo Luca Belli, pesquisador do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV, “O texto [do Marco Civil] não impede a internet das coisas. O princípio da não discriminação é importante para garantir que o desenvolvimento da internet das coisas privilegie as mais importantes e inovadoras, não as de grupos dominantes”.
Portanto, a neutralidade de rede não proíbe diferenças de tratamento, desde que seja por motivos emergenciais, não econômicos. É necessário que os direitos dos consumidores sejam garantidos, não moldados aos interesses empresariais.
Nos Estado Unidos, ainda resta esperança. O senado pode anular a decisão da FCC. Entretanto, isso será feito?
Apesar de estarmos “engolindo” a aprovação de projetos de lei com altos índices de reprovação, não podemos ficar calados quando nosso direito fundamental de liberdade é ameaçado.
Qual sua opinião sobre a neutralidade de rede?
Fontes: Tom’s Guide, Interesting Engineering, The Verge, Ars Technica, Tecmundo e Polygon
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