Índice
- Como funciona o direito autoral tradicional (Brasil e EUA)
- Como funciona o direito autoral para obras de inteligência artificial
- Quem é dono de uma imagem, texto ou outro conteúdo criado com IA
- Permissões dadas pelas empresas (o que elas costumam garantir aos criadores)
- Garantias contra o copyright e processos
No mundo da criação digital contemporânea, a ascensão da inteligência artificial trouxe uma série de questões complexas e intrigantes sobre propriedade intelectual. Com o avanço rápido da tecnologia, cada vez mais obras criativas, desde imagens até composições musicais, estão sendo geradas com o auxílio de algoritmos e sistemas de IA.
Diante desse cenário, eis uma pergunta fundamental: quem é dono das obras criadas com inteligência artificial? Essa questão essencial tem gerado debates em círculos jurídicos e tecnológicos, explorando os limites da autoria, propriedade e responsabilidade em um contexto onde a linha entre a criatividade humana e a geração autônoma de conteúdo por máquinas se torna cada vez mais tênue.
Como funciona o direito autoral tradicional (Brasil e EUA)
Para se entender como direitos autorais procedem tanto no exterior como no Brasil, primeiro é importante já esclarecer do que se trata esse assunto exatamente. Embora tenhamos alguma noção de que existe uma norma que rege nossos direitos sobre nossas obras, ainda assim existem algumas camadas importantes a se destacar:
Direitos autorais ou copyright é um sistema legal que concede aos criadores de obras originais o direito exclusivo de controlar a reprodução, distribuição e uso de suas criações por um período específico de tempo. Outros métodos incluem patentes e marcas registradas, que protegem invenções, símbolos ou slogans empregados em atividades publicitárias.
No Brasil, os direitos autorais são regidos pela Lei nº 9.610, conhecida como Lei de Direitos Autorais, que protege as obras literárias, artísticas e científicas. Eles são concedidos automaticamente ao criador da obra no momento de sua criação. Isso significa que se você escrever um livro ou uma música, pintar um quadro ou tirar uma foto, você é automaticamente o detentor dos direitos autorais dessa criação. Além disso, não é necessário registro formal, e você ainda tem o direito exclusivo de utilizar, reproduzir, distribuir e autorizar o uso dela. No país, a proteção do copyright pode ir além do período de vida do autor (70 anos após a morte do mesmo). Depois disso, passa a ser de domínio público.
Já nos Estados Unidos, os direitos autorais são regidos pelo Copyright Act (Lei de Direitos Autorais), com emendas posteriores. Da mesma forma que no Brasil, esses direitos são concedidos automaticamente ao criador no momento da criação da obra. O copyright na América do Norte oferece aos criadores o direito exclusivo de reproduzir, distribuir, exibir e realizar suas obras, assim como o direito de controlar trabalhos derivados.
Como funciona o direito autoral para obras de inteligência artificial
A verdade é que o direito autoral para obras de inteligência artificial é um campo relativamente novo e complexo, que ainda está em desenvolvimento em muitas jurisdições ao redor do mundo. Uma das questões centrais é determinar quem é considerado o autor da obra de IA de fato. Em muitos casos, o programador ou desenvolvedor que criou o algoritmo seria o autor inicial, até porque eles escreveram o código e estabeleceram os parâmetros para a geração da obra. No entanto, à medida que a IA opera de forma autônoma e produz conteúdo sem intervenção humana direta, surge o debate sobre se a IA pode ser considerada uma autora legítima.
Se considerarmos o programador como o autor inicial, ele ou a entidade empregadora geralmente detêm os direitos autorais sobre as obras geradas pela IA. No entanto, também há discussões sobre se a tecnologia pode ser reconhecida como uma “pessoa jurídica” para fins legais, o que poderia implicar que ela própria tenha direitos autorais sobre as criações. Isso também acaba nos levando a pensar e debater sobre a responsabilidade pela violação de direitos autorais e outros problemas legais relacionados às obras dessa tecnologia.
Alguns artistas já vêm enfrentando desafios por terem seus estilos copiados por IAs, por exemplo. É o caso da artista Karla Ortiz, que chegou a apresentar uma ação (junto de outros colegas) em um tribunal federal dos Estados Unidos contra as empresas responsáveis pelas ferramentas DreamUp, Midjourney e Stable Diffusion.
Para serem elegíveis para proteção, as obras devem ser originais e exibir um grau mínimo de criatividade. No contexto da IA, essa questão pode ser complicada, uma vez que ela pode “aprender” com grandes conjuntos de dados e produzir obras que são derivadas de outras criações existentes. Recentemente, o tribunal do distrito de D.C. observou que estamos nos aproximando de novas fronteiras no campo dos direitos autorais à medida que os artistas começam a utilizar a inteligência artificial como uma ferramenta na geração de novas obras visuais e artísticas. Isso também passou a levantar algumas pautas sobre a quantidade de contribuição humana necessária para qualificar o usuário de um sistema de IA como “autor” de uma obra.
Vale destacar que métodos de autenticação digital e tecnologias de blockchain também estão sendo explorados como meios de documentar e comprovar a autenticidade das obras geradas tecnologicamente. Fato é que as leis estão em constante evolução para lidar com os avanços modernos e muitas jurisdições ainda estão desenvolvendo políticas e regulamentos específicos para abordar questões relacionadas aos direitos autorais e AIs. Por conta disso, apesar de haver muitas jurisdições ao redor do mundo que não exigem registro formal para proteção de copyright, ele ainda é recomendado para estabelecer a autoria e a data de criação de uma obra de IA.
Nos Estados Unidos, autores que utilizam ferramentas de IA para criar obras de arte são aconselhados a manter um registro de suas contribuições na criação da versão final da obra e fornecer essas informações ao Escritório de Direitos Autorais dos Estados Unidos ao buscar registro. Essa prática é considerada prudente enquanto o Congresso não age para mudar o rumo da legislação atual nessa área. Já no Brasil, ficou estabelecido que obras geradas por inteligência artificial não são elegíveis para proteção de direitos autorais.
Quem é dono de uma imagem, texto ou outro conteúdo criado com IA
A determinação sobre ser o dono de obras geradas por IA depende de uma série de fatores, incluindo a natureza da criação, os acordos prévios entre as partes envolvidas e a legislação aplicável em cada jurisdição. Como já mencionado, em muitos casos, o desenvolvedor que criou o algoritmo de IA seria considerado o autor inicial do código e essa é a abordagem tradicional e que funciona no Brasil e EUA, assim como em muitas leis de propriedade intelectual ao redor do mundo. Mas em 2023, algumas situações ocorreram para tentar mudar isso.
O Escritório de Direitos Autorais dos EUA disse que as imagens de uma história em quadrinhos criadas pelo sistema de inteligência artificial Midjourney não deveriam ter recebido proteção de direitos autorais. A autora da história, Kris Kashtanova, pode ter direitos autorais sobre o que ela escreveu, mas não sobre as imagens feitas pela IA e, portanto, o escritório disse que iria retirá-las do registro de copyright. Essa foi uma das primeiras decisões sobre a inteligência artificial ter direitos.
Mas o copyright também pode ser determinado por meio de contratos ou acordos prévios entre as partes envolvidas no desenvolvimento ou uso da IA. Por exemplo, se um contrato entre o desenvolvedor e a empresa especificar claramente quem detém os direitos autorais sobre as obras geradas pela IA, essas disposições geralmente são legalmente vinculativas. Agora, se a IA foi desenvolvida como parte de uma atividade comercial ou dentro do escopo do emprego, os direitos autorais sobre as obras geradas podem pertencer à empresa que financiou ou empregou os desenvolvedores. Nesses casos, a empresa seria considerada o proprietário dos direitos autorais.
Também no ano passado, um cientista da computação dos EUA tentou registrar patentes para invenções criadas por sua inteligência artificial na Grã-Bretanha, mas não conseguiu. Ele queria patentear duas invenções feitas por sua “máquina de criatividade” chamada DABUS. No entanto, como era de se esperar, o órgão responsável disse que só pessoas ou empresas podem ser inventores, não máquinas. O cientista então recorreu à Suprema Corte do Reino Unido, que concordou com a decisão, dizendo que a lei de patentes diz que o inventor tem que ser uma pessoa e que essa decisão esclarece a lei sobre patentear coisas feitas por IA, mas que ainda há muitas questões sobre como lidar com isso.
O cientista ainda tentou o mesmo nos Estados Unidos, mas não teve sucesso. Um advogado disse que, por enquanto, a IA é apenas uma ferramenta, não um criador independente, mas talvez, isso possa mudar no futuro.
Os direitos autorais nunca se estenderam tanto a ponto de proteger obras geradas por novas formas de tecnologia operando sem a intervenção de uma mão humana orientadora (…). A autoria humana é um requisito fundamental dos direitos autorais.
Tribunal do Distrito de D.C. (Distrito de Colúmbia)
Alguns argumentam que, à medida que a tecnologia se torna mais autônoma e capaz de criar conteúdo sem intervenção humana direta, ela própria poderia ser reconhecida como uma autora legítima. Será que ela poderia ser tratada como uma entidade legal separada? Até que ponto uma máquina merece proteção por direitos autorais?
Permissões dadas pelas empresas (o que elas costumam garantir aos criadores)
É comum empresas garantirem aos criadores o direito de serem reconhecidos e receberem crédito pelo conteúdo que produzem. Isso pode incluir o nome do criador nas obras em plataformas onde o conteúdo é exibido ou em outros materiais promocionais relacionados, o que significa que a pessoa tem controle sobre o uso e a distribuição do seu conteúdo, podendo até mesmo licenciá-lo para terceiros, se desejar. Muitas instituições também garantem uma compensação financeira justa com isso, podendo ser feito por meio de acordos contratuais, participação nos lucros gerados pelo conteúdo ou outras formas de remuneração, dependendo das políticas e práticas da instituição.
Outras permissões são ligadas à liberdade criativa significativa para criadores expressarem ideias e visões por meio do conteúdo que produzem. Ao mesmo tempo, empresas podem reservar o direito de realizar revisões ou edições no conteúdo para garantir que esteja alinhado com suas diretrizes e padrões de qualidade. Fornecimento de suporte técnico, recursos e ferramentas para ajudar a maximizar a produtividade e qualidade de trabalho, também é considerado. Isso pode incluir acesso a software especializado, treinamento em novas técnicas ou tecnologias e assistência técnica contínua, por exemplo.
É importante que as empresas garantam aos criadores proteção legal adequada para seus trabalhos, incluindo medidas para proteger os direitos autorais e a propriedade intelectual. Isso também pode envolver a implementação de políticas de segurança cibernética para proteger o conteúdo contra violações e pirataria, bem como o fornecimento de assistência legal em caso de litígios.
Um projeto de Lei (PL1473/23) foi proposto pelo deputado Aureo Ribeiro, o qual diz que empresas que utilizam sistemas de inteligência artificial sejam obrigadas a oferecer ferramentas que permitam aos criadores restringir o uso de suas obras pelos algoritmos, ou seja, permiti-los controlar como suas obras são utilizadas por esses sistemas. No entanto, a implementação desses controles possui alguns desafios pela complexidade e opacidade das máquinas, muitas vezes consideradas “caixas-pretas”, além da vasta quantidade de dados utilizados para treiná-las.
Garantias contra o copyright e processos
Quando se trata de garantias contra violações de direitos autorais e possíveis processos legais, alguns amparos aos criadores de conteúdo são oferecidos:
- Verificação de direitos autorais prévios: Empresas podem implementar procedimentos para verificar a originalidade do conteúdo produzido pelos criadores antes de ser publicado ou distribuído. Isso pode incluir a análise de possíveis violações de direitos autorais por meio de ferramentas de verificação de plágio ou outras soluções tecnológicas.
- Garantias de uso legal de recursos e materiais: Instituições também podem oferecer orientações claras aos criadores sobre o uso legal de recursos, materiais e conteúdos de terceiros em suas criações. Isso pode incluir diretrizes sobre o uso de imagens, músicas, vídeos e outros elementos protegidos por direitos autorais, bem como a necessidade de obter permissões adequadas quando necessário.
- Licenciamento e acordos contratuais: Garantia de licenças adequadas para o uso de determinados recursos e materiais em suas plataformas também são destaque, bem como o estabelecimento de acordos contratuais claros com os criadores que definam os direitos e responsabilidades de ambas as partes em relação ao conteúdo produzido.
- Assistência legal e representação: Em caso de disputas ou processos legais relacionados a violações de direitos autorais, empresas também podem oferecer assistência legal e representação aos criadores afetados. Isso envolve a contratação de advogados especializados em propriedade intelectual para defender os interesses dos criadores e resolver disputas de forma justa.
- Políticas de resolução de disputas: Políticas devem ser claras e transparentes para lidar com reclamações de violação de direitos autorais, incluindo a implementação de processos de mediação ou arbitragem para resolver disputas fora dos tribunais, sempre que possível.
- Atualizações e educação contínua: Treinamento e educação contínua é também um direito, especialmente quando se trata justamente de copyright, plágio, licenciamento e outras questões legais relevantes. Isso ajuda a garantir que os criadores estejam cientes de suas responsabilidades e possam evitar inadvertidamente violações.
Em maio do ano passado, Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, propôs uma lei para regulamentar o uso da inteligência artificial no Brasil. Ela foi escrita por especialistas em leis digitais e civis, e uma das partes importantes é sobre quem seria responsável caso algo dê errado por causa da IA. Se seu uso for considerado de alto risco, quem criou ou a opera, será responsabilizado mesmo que não tenha feito nada de errado conscientemente. Para inteligências artificiais de menor risco, a culpa será presumida, ou seja, será considerado que quem criou ou opera a IA é culpado, a não ser que eles possam provar o contrário.
A lei não fala sobre punições criminais, mas diz que quem descumprir as regras terá que pagar multas altas. Além disso, ela também estabelece doze princípios que devem ser seguidos quando se usa IA no Brasil, como garantir que humanos estejam envolvidos no processo e que a tecnologia não discrimine ninguém. Apesar de definir o que uma autoridade responsável deveria fazer, ainda não se sabe exatamente qual órgão será responsável e isso será decidido pelo governo.
Em resumo, o direito autoral para obras de inteligência artificial apresenta alguns desafios e requer uma abordagem bastante cuidadosa para equilibrar os interesses dos criadores humanos, proprietários de IA e o público em geral. É inevitável que a evolução das leis e práticas nesse campo continuará sendo um tópico importante à medida que essa tecnologia avança.
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Fontes: Copyright.gov, Câmara dos Deputados, Reuters, PatentNext
Revisão do texto feita por: Pedro Bomfim