Índice
A indústria da música já passou por muitos momentos de alta, e alguns outros de baixa. A pandemia causada pelo novo coronavírus abalou profundamente as estruturas do mundo musical, e o streaming cresceu vertiginosamente. Mesmo assim, essa não foi a primeira crise, nem será a última. O documentário System Shock, produzido pela Bloomberg, mostra a revolução causada pelo MP3 até o momento atual da música em decorrência da pandemia. E, para recomendar e contar um pouco dessas histórias e crises precisamos voltar alguns anos na história e viajar até a Alemanha para ver como o MP3 mudou o mundo da música.
As origens do MP3
Em 1982, o mundo vivia uma época primorosa no ramo musical. Iron Maiden arrebentava tudo com The Number of the Beast, Manowar trazia o clássico Battle Hymn, Billy Idol estreava em carreira solo, Michael Jackson roubava a cena com o megahit Thriller e muitas outras bandas e cantores lançavam seus novos trabalhos. Resumindo, foi um ano bem agitado para a indústria.
Mas, enquanto tudo isso acontecia, um brilhante professor na Alemanha teve uma ideia que poderia revolucionar o mundo. Dieter Seitzer lecionava no Instituto Fraunhofer quando foi até um escritório de registro de patentes e tentou registrar sua ideia. Nos documentos entregues, a patente sugeria a criação de uma central onde músicas estariam armazenadas e os usuários poderiam ligar via telefone e ouvir qualquer canção disponível. Obviamente, não era possível criar algo do tipo naquele momento, já que as músicas usavam uma largura de banda maior do que o telefone permitia. Então seu registro foi negado.
Alguns anos depois, em meados de 1988, Karlheinz Brandenburg era aluno de Dieter Seitzer e recebia conselhos de seu mentor em seu projeto na universidade. Um dia, Seitzer comentou sobre sua patente que fora recusada e Brandenburg teve uma ideia. Utilizando de uma obscura matéria do seu currículo escolar, a psicoacústica, ele percebeu que o ouvido humano era capaz de compreender somente uma pequena parte de todos os dados que eram reproduzidos por um CD. Ele então passou a trabalhar em um algoritmo que fosse capaz de comprimir os arquivos sem que houvesse a perda de qualidade.
Uma das músicas que ajudaram, e muito, no processo de melhora do algoritmo, foi a canção Tom’s Dinner, da cantora norte-americana Suzanne Vega. O título era particularmente complicado por se tratar de uma canção a capella (somente voz, sem instrumentos), e havia uma imensa dificuldade em comprimir a voz humana, enquanto os outros instrumentos já contavam com uma boa qualidade.
Depois de uma imensa quantidade de trabalho, e após escutar a música mais de mil vezes, eles conseguiram fazer com que tudo funcionasse perfeitamente, obtendo a qualidade desejada. Lançaram um programa compressor de MP3 em formato de shareware, isto é, livre para ser compartilhado, mas que precisava de um código para ser usado completamente.
O programa caiu na mão de diversos grupos que conversavam via mIRC (Messenger Internet Relay Chat, um sistema de conversação muito utilizado no início da internet). Membros desses grupos facilmente quebraram o sistema de segurança, o que fez com que o compressor se espalhasse pelas comunidades, dando origem a um novo movimento na internet.
Os primeiros pirateiros e como o MP3 mudou o mundo
O computador já era uma realidade para muitas casas americanas. Apesar de não haver uma conexão de alta velocidade, muita gente já baixava programas e arquivos na internet. Como dito antes, as comunidades do mIRC estavam em alta, e o compressor de MP3 já estava entre eles. Muitos piraram com a ideia, passando dias comprimindo CDs e colocando-os disponíveis na web.
Vários sites foram abertos também. Muitos se dedicavam a gêneros musicais específicos, como o punk, jazz, metal, pop e muitos outros. O público passou a frequentar essas páginas e muitos downloads eram realizados, ainda que baixar arquivos não fosse tão fácil. Além de demorar muito, erros eram frequentes, prejudicando a experiência.
Naquele período, a RIAA (Recording Industry Association of America, Associação Americana da Indústria de Gravação, em tradução literal), já estava a par da existência dos sites, porém não consideravam haver uma grande ameaça por parte desses endereços virtuais. Então, escolheram ignorar. Esse foi um dos primeiros erros da RIAA.
O surgimento do Napster
Shawn Fanning era um desses jovens de faculdade que passavam o dia todo nos chats e grupos de mIRC. E, como todos os outros, ele também baixava algumas músicas em MP3 da internet. Seu colega de quarto era viciado em bandas desconhecidas e sempre sofria para encontrar algumas canções e álbuns. Isso deixou uma pulguinha na cabeça de Shawn, que pensou: seria possível criar um programa onde as pessoas compartilhassem músicas pela Internet?
Ele comprou um livro de programação e passou a trabalhar. Começou a faltar em algumas aulas e perdeu totalmente o interesse na faculdade. Informou sua mãe que iria abandonar a escola e focar somente em seu trabalho no programa. Ele comentou sua ideia para seus amigos no mIRC, e um deles achou a ideia extremamente promissora: Sean Parker, que tornou-se seu sócio. Parker se tornou a cara da empresa, e passou a procurar investidores, enquanto Fanning focava em terminar o programa.
A ideia do programa era simples: conectar pessoas através de uma rede ponto-a-ponto enquanto os usuários compartilhavam músicas em MP3. Simples assim. Com o simples funcionamento, muita gente começou a utilizar o serviço chamado Napster. Enquanto as pessoas estavam felizes com suas músicas, havia um grupo de pessoas que não estava muito satisfeito com essa história: os grandes empresários do mundo da música, que viram seu faturamento cair, e muito. Muitos músicos também compraram a briga contra o Napster, e um grande processo teve início.
O acachapante processo contra o Napster
O Napster entrou em contato com as grandes produtoras musicais, desejando licenciar as suas atividades e passar a ser o responsável pela distribuição digital das canções. Os grandes cabeças da música ficaram revoltados com o surgimento daquele programa, e rechaçaram a ideia. Através da RIAA, um grande processo foi movido.
A ideia da RIAA era tirar o Napster do ar e receber uma compensação pelo dano causado pela empresa. Enquanto isso, o programa possuía mais de 70 milhões de usuários ativos, e já contava com músicas que ainda nem haviam sido lançadas no mercado. Diversos artistas, como Dr. Dre e o Metallica, fizeram campanha para que as pessoas parassem de utilizar o programa, e voltassem a comprar CDs, além de participar de todas as etapas possíveis do processo.
Apesar de lutar com todas as forças, o Napster perdeu, recebendo uma ordem judicial de retirar todo o conteúdo de terceiros do seu programa. Mas eles não iriam desistir facilmente, então apelaram para a corte federal, e ganharam seis meses de folga enquanto se preparavam para o embate final. Até o lançamento do Napster, a indústria musical bateu todos os recordes, chegando a ter mais de US$ 20 bilhões de dólares de lucro. E, após o advento do programa, a queda se acentuou vertiginosamente, até o surgimento dos serviços de streaming, como o Spotify.
Fanning e Parker sabiam que tudo jogava contra eles. A Corte Federal recebeu todos os argumentos e julgou que o pedido da RIAA era procedente, e ordenou que o Napster tirasse todas as músicas e álbuns do seu catálogo. A dupla percebeu que isso seria difícil de ser feito e entraram com pedido de falência da companhia, que foi vendida para outra empresa. Mesmo tendo vencido o processo, a RIAA não contava com uma coisa: o público havia se acostumado a baixar músicas de graça na internet. Além disso, diversos outros serviços similares ao Napster surgiram, como o SoulSeek, Kazaa e LimeWire.
A queda da indústria da música
Era a derrocada da indústria musical como a conhecíamos. O público não mais comprava CDs, já que estava acostumado a baixar canções na internet de graça. Os executivos da RIAA genuinamente pensavam que, após derrubar o Napster, as pessoas iriam parar de baixar tudo e iam voltar a comprar CDs de novo. Ledo engano.
Isso causou turbulência nas redes de lojas especializadas em música. Muitas delas tiveram problemas para se manter abertas, e começaram a despedir seus funcionários e fechar lojas franqueadas. Aquele era o começo do fim dos CDs como principal meio de consumo de música. Além disso, a RIAA passou a processar pessoas aleatórias que haviam apenas baixado algumas músicas pela internet. Cerca de 20 mil pessoas foram processadas e foram obrigadas a pagar altas quantias. Mas, como não havia nenhum critério na seleção dos “alvos”, muitas das vezes eram escolhidas crianças e adolescentes.
A impressão que dava era de que os dinossauros da indústria musical estavam desesperados com a queda nos lucros, o que fez com que a imagem deles ficasse extremamente queimada com o público. Aproveitando isso tudo, um homem fez um movimento que mudou bastante o cenário daquela época.
A ida para o mundo digital
Steve Jobs havia acabado de retornar à Apple. A companhia estava se recuperando de uma série de decisões duvidosas, então seu fundador foi convidado para retornar. Ele tinha uma ideia e, para colocar em prática, convidou os chefões da música para visitá-lo na empresa e conhecer a novidade.
Jobs mostrou o que seria o protótipo de uma loja de músicas para serem vendidas pela internet. A grande novidade seria a venda de canções individuais, ao invés de álbuns, e pela bagatela de US$0,99, um valor extremamente baixo. Naquele período, em meados de 2002, um CD custava entre US$16 e US$18, e essa mudança — aliada à pirataria — fez com que os lucros afundassem ainda mais.
A loja digital, aliada com a criação do iPod, fez com que o público voltasse a consumir música de forma legalizada. Os executivos da RIAA não tinham mais o controle da distribuição digital das músicas, mas tudo estava praticamente voltando à normalidade. Contudo, como os consumidores podiam comprar somente uma música, isso meio que acabou com as bandas de um sucesso só como o Counting Crows, dono do hit Mr. Jones.
Porém, a evolução ainda não havia chegado ao seu estágio final.
O surgimento do streaming
A Suécia é um país escandinavo próximo à Noruega que possui uma tradição pirata extremamente forte. A ideia de baixar músicas e filmes de graça lá é quase como parte da rotina diária. Foi nesse país que nasceu um dos serviços que revolucionou a indústria da música: o Spotify. O nome do serviço é uma mistura das palavras spot e identify, que significam lugar e identificar em inglês. A junção nasceu quando Daniel Ek, um dos fundadores da empresa, ouviu errado uma das sugestões de Martin Lorentzon, seu parceiro de negócios.
Simplicidade é a palavra-chave do Spotify: acessar qualquer música ou podcast em qualquer lugar. Os usuários podem acessar todo o conteúdo de forma gratuita, mas há a opção de se pagar uma taxa e não ser obrigado a ouvir nenhuma propaganda. O cerne do serviço continua o mesmo, com algumas mudanças de layout ao longo dos tempos.
Conquistando a Suécia, o Spotify passou a ir para outros países europeus, como o Reino Unido, e depois de muito tempo chegou aos Estados Unidos. Os grandes figurões da música deixaram a empresa esperando por muito tempo antes de liberar a licença de uso das músicas por ali. A espera chegou a mais de seis meses, até que eles pudessem finalmente trabalhar.
Mas a jornada da empresa não foi sem percalços. Diversos artistas, como Taylor Swift e outros, reclamaram sobre a divisão de pagamentos dos royalties — atualmente a plataforma paga em média 70% para os artistas e gravadoras. Além disso, o Spotify já passou por vários problemas com músicas e podcasts, tendo inclusive que remover algumas obras, como canções do XXXTentation e R. Kelly por discurso de ódio.
O efeito da pandemia
Então, quase vinte anos após o surgimento do Napster, a indústria da música voltou a bombar fortemente. Festivais quase sempre lotados. Shows de bandas e artistas sempre com o seu fiel público. Os mais famosos fazendo mais de 200 apresentações por ano, vendendo produtos e lucrando. Muito.
Aí veio o novo coronavírus. O mundo inteiro, praticamente, entrou em regime de confinamento. Então, acabaram os shows, festivais e tudo que possa reunir mais do que meia dúzia de pessoas. Foi um baque tremendo. Músicos e staff, em casa, sem a possibilidade de trabalhar e de manter o seu sustento.
Contudo, a falta de shows fez as pessoas ficarem mais tempo em casa, o que fez com que o consumo de músicas aumentasse exponencialmente. Muitos artistas viram um enorme crescimento nos números, e com isso o faturamento também aumentou. Claro que não ao ponto de substituir os lucros advindos dos shows, e isso afetou principalmente os músicos independentes.
A questão do streaming é fundamental. Falando da Monticelli, nós sempre procuramos deixar nossas redes sociais atualizadas, além de trabalhar forte no streaming. Na era digital, uma banda que não se atualiza ou que não foca nisso está fora ou um passo atrás das outras. A rentabilidade só vem quando a banda tem milhões de acessos, e isso faz com que os grupos sobrevivam com shows e venda de produtos, além das parcerias com grandes marcas, e todo mundo ganha, já que aumenta a visibilidade e coloca a banda em uma vitrine melhor, com maior acesso por parte do público.
Bruno Monticelli, baterista e fundador da banda Monticelli.
Muitos artistas precisaram encontrar formas de se manter em contato com o público, e assim as lives ganharam destaque. Seja para arrecadar fundos e doações para a caridade, seja para manter estreitos os laços dos artistas com o público, uma explosão de lives no mundo inteiro movimentou o mundo da música. A cantora brasileira Marília Mendonça foi a líder mundial no número de visualizações em uma live, com mais de 3,3 milhões de telespectadores, batendo o grupo coreano de K-Pop BTS, o cantor Andrea Bocelli e diversos outros.
Alguns passaram a fazer lives em plataformas como a Twitch, como exemplo temos a banda Dragonforce, que faz lives com frequência e depois disponibiliza trechos em sua página do YouTube. Claro que muitos músicos independentes aderiram à moda, o que fez com que eles ganhassem muitos seguidores e doadores, permitindo que bandas e cantores continuassem atuando. Muitos também aproveitaram para se dedicar à criação de novas canções.
Nós decidimos não fechar shows esse ano, já que estávamos trabalhando no nosso álbum novo. Mas aproveitamos para participar de programas de televisão, já que isso nos mantém na ativa, além de nos apresentar para o público. A pandemia nos atrapalhou muito, já que planejávamos viajar para a Europa tem uns 3 meses. E enquanto tudo não voltar ao normal, vamos ter que esperar as casas de show voltarem a contratar bandas.
Finaliza Bruno, da banda Monticelli.
A realidade é que os músicos e profissionais da área estão sofrendo muito com a paralisação dos shows. Por mais que o governo tenha dado alguns incentivos e bolsas para que essas pessoas possam sobreviver, nada irá substituir a renda que é recebida pelo próprio esforço. Enquanto as coisas não voltarem o mais próximo do normal possível, tudo continuará da mesma maneira. E então, só nos resta aguardar.
Mas, não fosse o formato MP3, nada disso seria possível. As três partes do documentário System Shock, que mostra como o MP3 mudou o mundo da música, podem ser assistidos a seguir:
Fonte: Toptal, Music Businnes Research, Forbes, Visual Capitalist